sexta-feira, abril 19, 2024
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Um microssistema de tutela do custeio dos direitos sociais nos protege

Em tempos de dúvida sobre a Constituição não caber no PIB e sobre os custos dos direitos sociais não serem minimamente assegurados no orçamento, nós somos tomados pela questão nuclear sobre o que é realmente prioridade da nossa vida em sociedade e, em especial, sobre o que não se sujeita a restrições fiscais na ação do Estado.

Interessante, por sinal, é questionarmos onde começam e terminam as fronteiras da “reserva do [fiscalmente] possível”, sem que saibamos claramente, por exemplo, quais são os limites para as despesas financeiras e como se comportariam as receitas sem tantas renúncias fiscais concedidas ao arrepio da legislação e sem tantos abusos, desvios e desídia na sua gestão.

Para além de debates contingentes e propostas de ocasião para enfrentar tal conflito distributivo sobre a destinação das receitas governamentais, arrecadadas republicanamente junto a toda a sociedade, é chegado o momento de termos clareza do conjunto de regras e princípios que estão em jogo quanto à prioridade fiscal de que gozam os direitos fundamentais no orçamento público.

Assim como a integração de leis e normas esparsas permitiu ao Direito Processual brasileiro assentar a existência do microssistema de tutela jurisdicional coletiva, precisamos retomar a pluralidade de normas inscritas na Carta de 1988, em tratados internacionais de que o país é signatário e em leis infraconstitucionais como um conjunto integrado de tutela do financiamento suficiente e progressivo dos direitos fundamentais.

Diferentemente do que usualmente se concebe, não tratamos aqui apenas de regras isoladas na Constituição de 1988 a fixar piso de custeio em favor dos direitos à saúde (artigo 198) e à educação (artigo 212), ou ainda acerca do orçamento da seguridade social (artigo 165, §5º, III). A bem da verdade, há uma série de dispositivos que se reforçam reciprocamente em prol da primazia fiscal dos direitos fundamentais nucleares ao postulado da dignidade da pessoa humana.

A integração sistêmica a que nos referimos opera como verdadeiro eixo semântico e finalístico dos orçamentos públicos no país, vez que ela é capaz, por exemplo, de justificar a instituição de espécies tributárias destacadas em sua destinação e em seu regime jurídico peculiar, bem como é forte o bastante para situar, na exceção à regra geral de não afetação de impostos, o conteúdo mínimo das despesas incomprimíveis e inadiáveis de quaisquer leis orçamentárias anuais.

Doutrinária e jurisprudencialmente ninguém questiona o fato de que o regime acerca da tutela dos direitos individuais homogêneos, coletivos e difusos inscrito no Código de Defesa do Consumidor ultrapassa seu âmbito de incidência. Isso porque os seus artigos 81 a 104 não dizem respeito tão somente à proteção do consumidor, mas dialogam reflexivamente e reforçam o arcabouço normativo da Constituição de 1988 e da Lei de Ação Civil Pública para todo e qualquer direito transindividual, ao que se somam as demais leis que tratam do mandado de segurança, da ação popular etc.

A interpretação conjugada entre as diversas normas constitucionais e legais consolidou um regime jurídico hígido que é tão mais forte quanto mais integrado na defesa preventiva e, se necessário, na tutela jurisdicional coletiva, por exemplo, do meio ambiente, da moralidade administrativa, do consumidor, da criança e adolescente, do idoso, da saúde e da educação, dentre outros.

Para além das nuances do direito material específico envolvido na concreta busca por sua efetividade, fato é que contamos com um conjunto harmônico e reforçado de garantias processuais, na medida em que, de tal microssistema da tutela jurisdicional coletiva, emergiram normas integradoras que se aplicam à proteção e à exigibilidade de quaisquer direitos transindividuais.

Numa imagem muito singela, é como se o escudo processual de defesa não fosse apenas do tamanho do regime isolado de cada direito individual homogêneo, coletivo ou difuso. A tutela jurisdicional coletiva é maior, muito maior que os direitos por ela amparados, porque ela defende o ordenamento inteiro e é capaz de produzir decisões com efeitos erga omnes. A estrutura de defesa (verdadeiro escudo de contenção do arbítrio) é erigida aqui de modo a formar todo um exército de instrumentos e armas processuais, que são postos em movimento coordenadamente para refutar a mitigação ou a aniquilação dos direitos transindividuais.

Ao nosso sentir, há no ordenamento brasileiro um idêntico fluxo estruturante que também se aplica à tutela do financiamento constitucionalmente adequado dos direitos fundamentais. Somos protegidos, como sociedade e como cidadãos detentores de direitos subjetivos públicos à saúde, à educação e a todas as prerrogativas materiais nucleares à preservação da vida digna, por um microssistema de tutela do custeio suficiente e progressivo dos direitos fundamentais.

Se assim não fosse, aliás, nem mesmo razão de ser haveria para a instituição das contribuições sociais como tributo autônomo, tampouco para a pretensão de o Estado cobrar taxas referidas à cobrança de serviços públicos capazes de gerar comodidades e bem-estar para o cidadão. É óbvia a correlação de proporcionalidade entre o fluxo da receita tributária e as despesas que visam assegurar o custeio dos direitos fundamentais, como um verdadeiro pacto fundante que fixa a equação sobre quais meios de que o Estado dispõe para atingir quais fins almejados pela sociedade.

Diante de tais premissas, precisamos erigir a compreensão sobre o aludido microssistema como uma verdadeira estrutura de contenção do retrocesso e de proteção da estabilidade jurídica e da progressividade fiscal do financiamento dos direitos fundamentais.

O arcabouço normativo, cuja proposta de leitura que aqui trazemos é sistêmica, já é cotidianamente interpretado de forma segregada. Falta a todos nós sua forte integração para que seja alcançada a finalidade da máxima e progressiva eficácia dos direitos fundamentais, de que trata o artigo 5º, parágrafos 1º e 2º da Constituição.

Mas de quais normas estamos a tratar quando falamos em um “microssistema de tutela do custeio dos direitos fundamentais”? Referimo-nos às garantias fundamentais de financiamento adequado dos direitos sociais, como o são, por exemplo, os deveres de aplicação mínima em saúde e educação, vinculações de receita, regime de competências federativas, responsabilidades e sanções, algumas das quais são arroladas a seguir, sem pretensão de exaustividade:

1) hipóteses de intervenção inscritas nos artigos 34, VII, alínea “e” e 35, III da CR/1988, o que lhes atribui a natureza de princípios sensíveis, cuja sanção pelo descumprimento dos deveres de gasto mínimo em saúde e educação enseja vedação de reforma (aprovação de emendas constitucionais) durante o período em que durar a intervenção (artigo 60, parágrafo 1º da CR/1988);

2) condicionamento das transferências de recursos provenientes das receitas de que tratam o inciso II do caput do artigo 158, as alíneas “a” e “b” do inciso I e o inciso II do caput do artigo 159 (Fundo de Participação dos Municípios – FPM e Fundo de Participação dos Estados – FPE), na forma do artigo 160, parágrafo único, inciso II da Constituição, em caso de descumprimento do dever de aplicação mínima de recursos em ações e serviços públicos de saúde;

3) vedação de transferências voluntárias na forma do artigo 25, IV, alínea “b” da Lei de Responsabilidade Fiscal em caso de déficit de aplicação quanto aos pisos de custeio em saúde e educação;

4) hipótese de rejeição das contas, segundo os artigos 49, IX e 71, I da Constituição;

5) existência de uma sistemática orçamentária apartada na forma do artigo 165, parágrafo 5º, III, para resguardar o Orçamento da Seguridade Social e assegurar a universalidade da cobertura e do atendimento, bem como a irredutibilidade dos benefícios referidos aos direitos à saúde, à previdência e à assistência social ali inseridos, nos moldes do artigo 194, parágrafo único, incisos I e IV da Constituição;

6) espécie tributária das contribuições sociais (artigos 149 e 195 da CR/88), cuja existência no ordenamento brasileiro somente se justifica em face da sua destinação à seguridade social;

7) exceção explícita ao princípio da não afetação do produto da arrecadação de impostos de que trata o artigo 167, IV da Constituição;

8) organização da política pública em nível constitucional, a exemplo do Sistema Único de Saúde – SUS (artigo 200), do Fundeb (artigo 211 da CR/1988 e artigo 60 do ADCT) e do Plano Nacional de Educação – PNE (orientado pelo artigo 214, mas cujo conteúdo substantivo tem assento nos princípios do artigo 206 e nos deveres do artigo 208);

9) garantia de continuidade de transferências voluntárias, ainda que o ente político incorra em outras hipóteses normativas de lesão à LRF (parágrafo 3º do artigo 25 da LC 101/2000);

10) impossibilidade de contingenciamento de despesas, na forma do parágrafo 2º do artigo 9º da LRF, algo que, aliás, o próprio Supremo Tribunal Federal bem retomou no julgamento da cautelar sobre o descontingenciamento dos recursos do Fundo Penitenciário na ADPF 347, sobre o Estado Inconstitucional de Coisas no sistema prisional brasileiro;

11) impossibilidade de tredestinação a outros fins, na forma do artigo 8º, parágrafo único da LRF;

12) responsabilidade pessoal do gestor em caso de déficit de aplicação, desvio, fluxo irregular ou falta de condicionamento dos repasses, dentre outras formas de mitigar ou fraudar os recursos destinados à saúde e à educação, segundo dispõem o artigo 208, parágrafo 2º da Constituição, o artigo 60, XI do ADCT, o artigo 46 da Lei Complementar 141/2012, o artigo 69, parágrafo 6º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996), o artigo 1º, incisos III, IV e XXIII do Decreto-Lei 201/1967, artigo 7º, item 9 e artigo 10, itens 4 e 12 da Lei 1079/1950 e o artigo 13 da Lei 8.429/1992;

13) dever de implementação progressiva dos direitos no nível máximo de recursos disponíveis conforme o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (promulgado pelo Decreto 591/1992), que, em seu artigo 2º, item 1, assim determinou: “Cada um dos Estados Partes no presente Pacto compromete-se a agir, quer com o seu próprio esforço, quer com a assistência e cooperação internacionais, especialmente nos planos econômico e técnico, no máximo dos seus recursos disponíveis, de modo a assegurar progressivamente o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto por todos os meios apropriados, incluindo em particular por meio de medidas legislativas” e, por fim, mas não menos importante;

14) obrigação de adotar medidas até o máximo da disponibilidade orçamentária em prol dos direitos sociais, econômicos e culturais, inscrita no artigo 1º do Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, também conhecido como Protocolo de São Salvador (promulgado pelo Decreto 3.321/1999), cujo inteiro teor é o seguinte: “os Estados Partes neste Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos comprometem‑se a adotar as medidas necessárias, tanto de ordem interna como por meio da cooperação entre os Estados, especialmente econômica e técnica, até o máximo dos recursos disponíveis e levando em conta seu grau de desenvolvimento, a fim de conseguir, progressivamente e de acordo com a legislação interna, a plena efetividade dos direitos reconhecidos neste Protocolo”.

Todos os preceitos acima são instrumentos de contenção do considerável risco de retrocesso no estágio de proteção alcançado pelos direitos fundamentais. Mas, como já dito, não podemos tomá-los em consideração isoladamente, pois sua leitura precisa ser feita de forma integrada e integradora. Daí é que decorre, por conseguinte, a necessidade de questionarmos o severo risco — diante da PEC 241/2016 (PEC 55/2016 no Senado) — de erosão constitucional de todo um microssistema de tutela do custeio que opera como garantia fundamental, amparada pela estatura de cláusula pétrea (como já defendido em Custeio mínimo dos direitos fundamentais, sob máxima proteção constitucional e Financiamento dos direitos à saúde e à educação: mínimos inegociáveis)

Nós, os operadores do Direito, temos de falar, em meio a propostas de ajuste fiscal que pretendem assegurar apenas a correção monetária para a disponibilidade de custeio do Estado das ações e serviços públicos de saúde e da manutenção e desenvolvimento do ensino, que não cabe ao Poder Constituinte Derivado suspender a eficácia imediata e progressiva dos direitos sociais (artigo 5º, parágrafos 1º e 2º da CR/88) por até 20 anos.

O microssistema de tutela do custeio constitucionalmente adequado dos direitos fundamentais nos protege e nos dá garantias fundamentais para exigirmos que os governos de todos os níveis da federação busquem realizar um ajuste fiscal conforme o texto permanente[1] da Constituição e não contra ela ou a despeito dela.

O ministro Celso de Mello, do STF, quando da relatoria da ADPF 45/DF, asseverou que o arbítrio estatal não pode se opor à efetivação dos direitos sociais, donde foi firmada, paradigmaticamente, a necessidade de o Judiciário intervir em prol da “preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do ‘mínimo existencial’”.

É preciso, como feito pelo STJ no julgamento do REsp 1.389.952-MT, pelo ministro Herman Benjamin, erigir a primazia das despesas asseguradoras do mínimo existencial em face de todas as demais despesas governamentais, uma vez que “[…] somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. Ou seja, não se nega que haja ausência de recursos suficientes para atender a todas as atribuições que a Constituição e a Lei impuseram ao estado. Todavia, se não se pode cumprir tudo, deve-se, ao menos, garantir aos cidadãos um mínimo de direitos que são essenciais a uma vida digna […]” (grifo nosso).

Em face do risco de esvaziamento do Orçamento da Seguridade Social e de revisão do dever de progressividade na oferta dos direitos fundamentais à saúde e à educação, temos seriamente de pensar qual é o papel do controle judicial de políticas públicas acerca do ciclo orçamentário e da sua instrumentalidade constitutiva na efetividade dos direitos sociais.

Isso se faz necessário, até para que saibamos o que, de fato, vem primeiro dentre as prioridades alocativas governamentais na Constituição, como bem lembrava o próprio ministro decano do STF:

“Tal como pude enfatizar em decisão por mim proferida no exercício da Presidência do Supremo Tribunal Federal, em contexto assemelhado ao da presente causa (Pet 1.246/SC), entre proteger a inviolabilidade do direito à vida e à saúde — que se qualifica como direito subjetivo inalienável a todos assegurado pela própria Constituição da República (art. 5º, “caput”, e art. 196) — ou fazer prevalecer, contra essa prerrogativa fundamental, um interesse financeiro e secundário do Estado, entendo, uma vez configurado esse dilema, que razões de ordem ético-jurídica impõem, ao julgador, uma só e possível opção: aquela que privilegia o respeito indeclinável à vida e à saúde humanas” (ARE: 727864 PR, relator: min. Celso de Mello, grifo nosso).

Não temos dúvida de que o que vem primeiro, desde a promulgação da Constituição de 1988, é o homem e seus direitos e garantias fundamentais, inclusive no orçamento público. Para firmar a defesa inconteste de tal primazia fiscal, é que o microssistema de tutela do custeio dos direitos fundamentais precisa ser advogado por todos nós, nas raias até mesmo da defesa da extensão qualitativa e quantitativa do artigo 60, parágrafo 4º, IV da CR/88.

Élida Graziane Pinto é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Revista Consultor Jurídico, 8 de novembro de 2016, 8h05

Por Élida Graziane Pinto