terça-feira, abril 16, 2024
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Migrantes venezuelanos, ensino superior e trabalho – novo texto da Página Grená

Gabriel de Almeida Belmonte[1]
Mestrando em Saúde Coletiva na Área de Concentração de Ciências Humanas e Saúde

Em linhas gerais, no Brasil, “o perfil migratório é jovem, em idade laboral e com graus elevados de desemprego” (SIMÕES, 2017, p. 16). Em relatórios desenvolvidos pelo Conselho Nacional de Imigrantes (CNIg, 2017) e pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR, 2019 e 2020), mais da metade dos entrevistados estava com idade entre 20 e 39 anos. Além disso, as taxas de desemprego de venezuelanos residentes no Brasil eram maiores que as já altíssimas taxas de desemprego da população geral no Brasil e também do desemprego de venezuelanos em seu país de origem. Metade dos empregados recebia menos de um salário-mínimo e havia a percepção, por parte dos migrantes (cerca de 16%), de que trabalhavam mais horas e recebiam menos que os brasileiros.

Entre 32-34% dos migrantes ouvidos para a confecção dos relatórios tinham nível de escolaridade equivalente a superior completo ou pós-graduação. No quesito relativo ao aproveitamento de profissão/ofício anterior, dos que trabalhavam, 68,8% não utilizavam suas prévias habilidades profissionais na ocupação atual ou nos últimos trabalhos. Este fato pode estar relacionado ao número reduzido de apenas 14 entrevistados que conseguiram revalidar seus diplomas e as próprias condições nacionais de desemprego que, na época da pesquisa, estava na marca dos 12% da população ativa. Assim, é possível entender que:

[…] em qualquer uma dessas situações, o fato é que os refugiados não conseguem valer-se de suas competências profissionais, demonstrando que o processo migratório desclassifica (‘empurra para baixo’) social e economicamente o migrante em geral e o refugiado em particular. (ACNUR, 2019, p. 31).

A atitude identificada entre nós desde a República Velha, que vê o migrante como bode expiatório e usurpador dos serviços públicos e das oportunidades de trabalho dos nacionais (COSTA, 2007), intensifica-se pelas políticas liberais que, a partir da década de 1950-70, produzem no Brasil e no mundo um processo de precarização social e precarização do trabalho (FRANCO; DUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010), responsáveis, por sua vez, por aumentar a xenofobia e a perseguição aos não-nacionais. As manifestações brasileiras de ódio e discriminação estão saturadas nos últimos anos, por meio da culpabilização e do discernimento de uma suposta sobrecarga do mercado de trabalho devido à presença dos migrantes, [2] sobretudo os refugiados e com vistos humanitários, como haitianos e venezuelanos, entre outras nacionalidades.[3] Estamos aqui longe dos mitos da democracia racial e do Brasil como país hospitaleiro, acolhedor e de braços abertos, conforme apresentado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (2016).

Além disso, em tempos de crise, as primeiras demissões tendem a ocorrer entre os não-nacionais. Como resultado do entendimento e da prática trabalhista ocidental, multicultural e desigual, como no Brasil (CASTLES, 2011; DUTRA et al., 2016), são agravantes aos quais a população venezuelana pode estar exposta e vulnerabilizada. Em decorrência das associações tanto entre desemprego e danos à saúde mental e seus efeitos psicossociais (PINHEIRO; MONTEIRO, 2007; FRANCO; DRUCK; SELIGMANN-SILVA, 2010), quanto à precarização do trabalho e seus efeitos subjetivos (DRUCK, 2011; GUIMARÃES JÚNIOR; OLIVEIRA; MATOS, 2017; ARAUJO; MORAIS, 2017), essas tensões sociais estão em processos de intensificação.

Dempster et al. (2020) sugerem que refugiados que vivem em países de baixa e média renda são mais vulneráveis ainda aos efeitos econômicos da pandemia de Covid-19, pois trabalham em setores altamente impactados por ela. Assim, estimam que a pandemia disseminará também a perda de meios de subsistência e o aumento da pobreza nessa população, ao dificultar o acesso ao mercado de trabalho, redes de segurança social e ajuda humanitária.

Ressalta-se que o advento da atual pandemia de Covid-19, iniciada no primeiro trimestre de 2020, resultou em maiores complicadores à saúde mental de todas as populações (LIMA, 2020; ANDRADE; ALVARENGA, 2020), embora atue em especial nas comunidades socialmente mais vulneráveis (DAVIS, 2006; PEREIRA, 2020). Busca-se otimizar a investigação ao incluir também o período de enfrentamento da pandemia com os diversos efeitos psicológicos, sociais, políticos e econômicos, ao considerar importante o direito de fala e de memória do momento pandêmico, em resistência ao silenciamento de vozes de pessoas comuns e invisibilizadas, reconstituindo a história vivida e seus atravessamentos (VIEIRA, 2020).

E por que a Saúde Coletiva? Por ser um campo científico e político, um espaço social, crítico e inter/multi/transdisciplinar, que faz parte da história do Brasil e do enfrentamento aos regimes antidemocráticos e de extrema violência. Este campo corrobora a mobilização, através da garantia da saúde e da vida, contra as desigualdades sociais e as mazelas que atingem o mundo e as populações mais marginalizadas, como os migrantes — sobretudo refugiados, pobres e não-brancos.

Logo, a reflexão sobre migração, trabalho e saúde mostra-se pertinente, seja pela transdisciplinaridade de Saúde Coletiva, seja por suas características, ou ainda, por seus compromissos científicos e políticos para com a vida. É também capaz de abarcar as discussões da migração, por ser uma área do conhecimento ou do saber múltipla, incorporando diferentes disciplinas e olhares e cuja história demonstra ser de resistência e de ativismo político, ideológico, profissional e social.

A proposta de investigação nasce pelo interesse em, além de entrar em contato com as realidades dos corpos migrantes presentes na cidade do Rio de Janeiro, compreender seus funcionamentos, dinâmicas e limites de sua definição como população específica. Do mesmo modo, busca-se entender os processos sociais e as percepções acerca das relações entre saúde e doença, vida e modos de cuidado, entre outros indicadores e resultados dos atravessamentos da condição desta categoria de migrante, em um universo de migrantes, refugiados, deslocados internos, entre outros.

Partilha-se a ideia de que a Saúde Coletiva pode ser um espaço ou campo científico e político de produção de saberes, conhecimentos e propostas de intervenções que visam conhecer e melhorar os modos de andar a vida de diferentes grupos sociais em suas particularidades. Busca-se, ainda, afirmar a primazia da vida e do bem-estar, a partir da produção de dados para construção de estratégias, políticas públicas e dispositivos de promoção de saúde e, em última instância, de vida.

A partir desse mote, a pesquisa de mestrado do autor deste texto se debruça sobre a experiência migratória venezuelana e a reterritorialização na cidade do Rio de Janeiro. Através de uma pesquisa qualitativa, baseada em entrevistas virtuais com venezuelanos com ensino superior, maiores de idade e residentes da cidade do Rio, buscou-se registrar e analisar os possíveis impactos desse processo turbulento, sobretudo durante a pandemia.

REFERÊNCIAS

ACNUR. Perfil socioeconômico dos refugiados no Brasil. Subsídios para elaboração de políticas. 2019. Disponível em <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2019/05/Resumo-Executivo-Versa%CC%83o-Online.pdf> Acesso em: 20 jun. 2019.

_______. Venezuelanos no Brasil: integração no mercado de trabalho e acesso a redes de proteção social, 2020. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2020/07/Estudo-sobre-Integra%C3%A7%C3%A3o-de-Refugiados-e-Migrantes-da-Venezuela-no-Brasil.pdf>. Acesso em: 07 out. 2020.

ANDRADE, M. C. R.; ALVARENGA, M. A. S. Aspectos e intervenções psicossociais nas pandemias na contemporaneidade. Cad. Saúde Pública, v. 36, n. 10, e00253520, 2020. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2020001008001&lng=en&nrm=iso>. http://dx.doi.org/10.1590/0102-311×00253520. Acesso em: 18 fev. 2021.

ARAUJO, M. R. M.; MORAIS, K. R. S. de. Precarização do trabalho e o processo de derrocada do trabalhador. Cad. psicol. soc. trab, v. 20, n. 1, p. 1-13, 2017. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-37172017000100001&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 18 fev. 2021.

CASTLES, S. Migration, Crisis, and the Global Labour Market. Globalizations, [S.l.], v. 8, n. 3, p.311-324, jun. 2011. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1080/14747731.2011.576847>. Acesso em: 16 abr. 2021.

CAVALCANTI, L.; OLIVEIRA, T. de; MACÊDO, M. F. R. Imigração e Refúgio no Brasil. Relatório Anual 2020. Série Migrações. Brasília, DF: OBMigra, 2020.

COSTA, J. F. História da psiquiatria no Brasil: um corte ideológico. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

DAVIS, M. O monstro bate à nossa porta. Rio de Janeiro: Record, 2006.

DEMPSTER, H. et al. Locked Down and Left Behind: The Impact of COVID-19 on Refugees’ Economic Inclusion. Policy Paper 179. Washington, DC: Center for Global Development and Refugees International. Disponível em: https://www.cgdev.org/publication/locked-down-and-left-behind-impact-covid-19-refugees-economic-inclusion

DRUCK, G. Trabalho, precarização e resistências: novos e velhos desafios? Cad. CRH, v. 24, n. esp. 1, p. 37-57, 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-49792011000400004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 fev. 2021. https://doi.org/10.1590/S0103-49792011000400004.

DUTRA, C. F. et al. A extinção do contrato de trabalho de haitianos e a crise brasileira: aportes do Direito da Antidiscriminação. Revista Signos, Lajeado, v. 37, n. 2, p.86-103, 23 dez. 2016. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.22410/issn.1983-0378.v37i2a2016.1096>. Acesso em: 16 mar. 2021.

FRANCO, T.; DRUCK, G.; SELIGMANN-SILVA, E.As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Rev. bras. saúde ocup., v. 35, n. 122, p. 229-248, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0303-76572010000200006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 fev. 2021. https://doi.org/10.1590/S0303-76572010000200006.

GUIMARAES JUNIOR, S. D.; OLIVEIRA, V. R. de; MATOS, A. A.Precarização do trabalho e efeitos subjetivos: interlocuções entre práticas de pesquisa. Rev. psicol. polít., v. 17, n. 39, p. 304-317, 2017. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1519-549X2017000200009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 18 fev. 2021.

HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

LIMA, R. C. Distanciamento e isolamento sociais pela Covid-19 no Brasil: impactos na saúde mental. Physis, v. 30, n. 2, e300214, 2020. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-73312020000200313&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 18 fev. 2021. http://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312020300214.

PEREIRA, A. B. Imigrantes, refugiados e o coronavírus: notas para reflexão. In: GROSSI, M. P.; TONIOL, R. (Orgs.). Cientistas sociais e o coronavírus. 1. ed. São Paulo: ANPOCS; Florianópolis: Tribo da Ilha, 2020.

PINHEIRO, L. R. S.; MONTEIRO, J. K. Refletindo sobre desemprego e agravos à saúde mental. Cad. psicol. soc. trab., v. 10, n. 2, p. 35-45, 2007. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-37172007000200004&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 18 fev. 2021.

SIMÕES, G. et al. Resumo executivo. Perfil sociodemográfico e laboral da imigração venezuelana no Brasil. Brasília, DF: Conselho Nacional de Imigração, 2017. VIEIRA, A. O. O direito de fala e de memória na epidemia. In: GROSSI, M. P.; TONIOL, R. (Orgs.). Cientistas sociais e o coronavírus. 1. ed. São Paulo: ANPOCS; Flor


[1] Se você conhece algum migrante venezuelano com as características descritas neste texto, envie meu contato telefônico (21) 99056-9827 ou e-mail gabrielbelmonte.psi@gmail.com para participar deste estudo.

[2] “Os imigrantes vão roubar nossos empregos”. Estrangeiros são vistos por parte dos brasileiros como ameaça externa; xenófobos demonstram desconhecimento das próprias origens. Redação Spbancarios, 2018. Acesso em: 18 fev. 2020. Disponível em: <https://spbancarios.com.br/10/2018/os-imigrantes-vao-roubar-nossos-empregos>.

[3] Em live, imigrantes apontam mercado de trabalho e xenofobia como desafios principais no Brasil. MigraMundo Equipe, 2020. Acesso em: 18 fev. 2020. Disponível em: <https://migramundo.com/em-live-imigrantes-apontam-mercado-de-trabalho-e-xenofobia-como-desafios-principais-no-brasil/>.