PL 1904: artigo debate aborto legal e direitos reprodutivos no Brasil
Nos últimos dias os debates sobre o aumento da penalização do aborto ganharam enorme proeminência social. Tais discussões foram fomentadas pela apresentação, à Câmara dos Deputado, do Projeto de Lei nº1904/2024, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcanti (PL/RJ). O PL visa enquadrar os abortos realizados a partir de 22 semanas como crimes de homicídios simples, cujas penas podem variar de 6 a 20 anos de detenção. O projeto visa obrigar meninas que engravidarem a seguirem com a gestação, além de penalizar tanto as pessoas que fizerem abortos em si próprias, quanto profissionais da área da saúde que realizarem tais procedimentos.
O deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL/RJ), autor do PL em questão, é teólogo e evangélico, membro da Igreja Assembleia de Deus. Conforme destacou o jornalista Lauro Jardim, em sua coluna no jornal “O Globo”, o projeto obteve forte apoio no Congresso Nacional, tanto por parte de parlamentares evangélicos, quanto por parlamentares católicos. Segundo Cristina Vital e Paulo Victor Lopes, no livro “Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil” (2013), a luta contra o aborto é uma das principais bandeiras dos parlamentares cristãos e este tema esteve presente em momentos políticos decisivos. Nas eleições presidenciais de 2010, por exemplo, esse tema representou um ponto fundamental para o apoio dos parlamentares evangélicos.
O PL 1904/2024 foi apresentado à Câmara dos Deputados logo após o Supremo Tribunal Federal (STF) suspender em maio deste ano uma resolução recente do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe a técnica conhecida como assistolia fetal, utilizada para a interrupção de gestações acima de 22 semanas. O STF alegou abuso de poder por parte do CFM, afirmando que se trata de uma técnica reconhecida como segura e eficaz pela Organização Mundial de Saúde (OMS). A resolução seguirá suspensa até deliberação da Câmara Federal. Contudo, tal deliberação deve ocorrer em breve, pois a Câmara Federal aprovou, nessa semana, o pedido de urgência na tramitação do projeto de Cavalcanti (PL/RJ).
Essa movimentação por parte de parlamentares conservadores gerou reações entre grupos progressistas que, entre outras ações, lançaram a campanha “Criança não é mãe”, que visa manter os direitos das mulheres e crianças de realizarem abortos nos casos já previstos por lei, inclusive ultrapassando o prazo de 22 semanas, além de conseguirem adesões ao abaixo-assinado contra o PL em questão.
Neste contexto, pesquisadoras da Rede transnacional de pesquisas sobre maternidades destituídas, violadas e violentadas (REMA), publicaram um artigo na coluna da REMA, no jornal “Brasil de Fato”, intitulado “Afinal, o aborto legal é um direito reprodutivo no Brasil?”, de autoria de Débora Allebrandt (UFAL), Laura Lowenkron (CLAM/IMS/UERJ) e Rosamaria Giatti Carneiro (UNB).
O artigo apresenta reflexões sobre as dificuldades de acesso ao aborto seguro por parte de mulheres e meninas que possuem direito a realizá-lo. Segundo as autoras, no Brasil o direito ao aborto legal é previsto em três situações: em caso de estupro, feto anencéfalo e risco para a vida da gestante. Entretanto, na prática, tal direito tem sido sistematicamente negado e sua busca tem sido martirizante para mulheres e meninas que necessitam desse recurso.
No artigo as autoras destacam que a técnica de assistolia fetal nos casos de aborto legal com mais de 22 semanas é utilizada na maioria das vezes em meninas que foram vítimas de estupro. As pesquisadoras explicam que na infância as gravidezes demoram mais a serem identificadas, por diversos motivos: as meninas, vítimas de estupro, se mantêm em silêncio, com medo de seus estupradores, muitas vezes membros da família. Em outros casos, não percebem que estão grávidas, por desconhecerem ainda os próprios corpos e detalhes biológicos envolvidos na concepção. Além disso, os adultos demoram a identificar gravidezes infantis, até pela própria dificuldade em conceber que crianças engravidem.
Entretanto, conforme destacam as autoras, a gravidez infantil segue sendo um sério problema no Brasil, agravado pela precariedade de acesso ao aborto seguro. O artigo apresenta dados da Rehuna (Rede pela humanização do parto e do nascimento), que estimam que em 2023, cerca de 12 mil meninas, com idades entre 8 e 14 anos, tiveram filhos no Brasil. As pesquisadoras afirmam que, caso a técnica de assitolia fetal seja proibida no país, os abortos legais serão realizados de modo ainda mais precário, aumentando os riscos à saúde reprodutiva das mulheres e meninas, que necessitarão realizar cesarianas para interromperem a gravidez.
Além das questões mencionadas acima, o artigo destaca que o acesso ao aborto seguro no Brasil é marcado por desigualdades de classe e raça. Com base na pesquisa de Emanuelle Goes (FIOCRUZ), “Dilemas interseccionais: racismo e aborto no Brasil”, as autoras apontam que as mulheres negras são as principais vítimas de abortos inseguros no país e são também as mais criminalizadas por esses procedimentos. Tais desigualdades se devem ao acesso precário a métodos contraceptivos e aos estigmas reprodutivos relacionados às mulheres negras, fatores que dificultam a busca rápida pelo aborto e por serviços médicos, aumentando a demora pela procura por atendimento, assim como os riscos e possíveis consequências geradas por procedimentos inseguros.
Conheça a coluna da REMA no “Brasil de Fato”. Trata-se de uma coluna mensal, que divulga pesquisas da Rede referentes aos direitos sexuais e reprodutivos, a partir de perspectivas interseccionais, promovendo debates e reflexões sobre o direito à maternidade voluntária, segura e responsável, assim como as violações a esse direito fundamental e suas consequências, não apenas para as famílias envolvidas, como para toda a sociedade.
Conheça também outras publicações sobre aborto desenvolvidas pelo Clam. Para saber mais sobre o panorama latino- americano em relação ao tema, acesse a matéria “Direitos reprodutivos em questão”. Acesse também a resenha de Naara Luna sobre o livro de Luc Boltanski, “La condition foetale: une sociologie de l’engendrement et de l’avortement”. Conheça os seminários sobre o tema realizado pelo Centro: “Aborto: desafios para a pesquisa e o ativismo” e “Desafios e perspectivas sobre os direitos reprodutivos no Brasil e na América Latina”. Confira o registro do Cine Debate sobre o filme “Verde Esperanza”, dirigido por Maria Lutterbach, com debate de Laura Molinari (Campanha nem presa nem morta), realizado no encerramento da disciplina “Políticas da Reprodução”, lecionada pela professora Laura Lowenkron (Clam/IMS/Uerj), pela doutoranda Tássia Áquila Vieira (IMS/UERJ) e pela pesquisadora Carla Gomes (PAGU/Unicamp).