Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro

Ecos do Puta Dei ))) Precisamos falar sobre isso

Jane Russo & Sérgio Carrara, pesquisadores e professores do Instituto de Medicina Social, argumentam neste texto informativo-opinativo, a importância da realização do evento "Mobilidades e prostituição: entre mitos e direitos", realizado no Puta Dei, em 2 de junho.
Texto de Jane Russo & Sérgio Carrara

No dia 2 de junho de 2017, através da realização do evento Mobilidades e prostituição: entre mitos e direitos, comemorou-se no auditório do IMS o Puta Dei. O dia lembra o momento, em 1975, quando 150 prostitutas ocuparam a Igreja Saint-Nizier, na cidade de Lyon-França, em protesto perante a discriminação e violência de Estado. Em reconhecimento à sua luta e coragem, esse dia foi declarado pelo movimento organizado de trabalhadorxs sexuais como Dia Internacional da Prostituta e vem sendo celebrado anualmente desde 1976. Em 2012, a expressão PutaDei para se referir à data foi cunhada no Brasil por iniciativa da organização de prostitutas GEMPAC (Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado de Pará).

No IMS o evento foi realizado no âmbito da disciplina Migração, Gênero e Saúde e incluído entre as atividades do movimento Uerj Resiste. O caráter simultaneamente acadêmico e político do encontro espelhou-se na composição da mesa de debates, que congregou pesquisadores do tema e ativistas do movimento de prostitutas. Além disso, ao final aconteceu a performance artístico-política de Tertuliana Lustosa, mulher trans e aluna do Instituto de Artes da UERJ.

Depois de advertir à plateia que a apresentação incluiria cenas de nudez e obtendo seu assentimento para realizá-la, Tertuliana despiu-se e passou a retirar de um envelope inúmeros documentos – registro de nascimento, laudos médico-psiquiátricos, testes hormonais, decisões judiciais etc. – que, ao longo dos anos, haviam sido produzidos sobre si e sobre seu corpo. Como barreiras simbólicas, os documentos que exibia pontuavam o árduo caminho que vinha trilhando na busca por direitos fundamentais – à vida, à dignidade e, sobretudo, à auto-determinação de gênero.  Em geral, as mesmas barreiras marcam a vida de todas as travestis, mulheres (e homens) transexuais brasileiras, empenhadas individual e coletivamente nessa luta. E, como se sabe, para muitas delas a prostituição é importante fonte de renda e de sobrevivência.

A prostituição é tema polêmico e, desde a publicação do livro do médico francês Parent-Duchatelet – La prostitution dans la ville de Paris – em 1836, vem sendo objeto de intensa discussão nos campos da saúde pública, da higiene e da medicina social. Por mais de um século, corpos de prostitutas foram assediados e esquadrinhados por uma ciência que buscava estabelecer as causas determinantes de uma atividade considerada como manifestação da imoralidade e do desvio sexual. Nessa direção, é exemplar a obra do médico e antropólogo criminal italiano Cesare Lombroso, La Donna Delinquente, publicado em 1893. Nele, Lombroso buscava demonstrar que, no corpo das prostitutas, inscreviam-se os estigmas ou sinais da degeneração, do atavismo.

No Brasil, desde a segunda metade do século XIX, os debates entre regulamentaristas e proibicionistas também envolveram médicos e juristas.  Um pouco mais tarde, a eles se juntariam historiadores, sociólogos e antropólogos. Trata-se, portanto, de assunto de grande importância no campo das ciências humanas e sociais em saúde, na medida em que envolve a sexualidade tanto de um ponto de vista sanitário, interessado no controle e prevenção de ISTs e AIDS, quanto de um ponto de vista sociocultural, voltado a refletir sobre as moralidades vigentes e suas transformações. Finalmente, prostituição e temas correlatos (tráfico de pessoas, exploração sexual etc.) tornaram-se, no pós-segunda guerra, tópicos incontornáveis na reflexão sobre os direitos humanos, uma vez que envolvem grupos fortemente estigmatizados (entre os quais, travestis e mulheres transexuais), expostos às mais variadas situações de risco, vulneráveis a todo tipo de violência física e simbólica.

A preocupação com a “inversão sexual” – rubrica sob a qual fenômenos como a homossexualidade, a transexualidade e a travestilidade foram compreendidos de finais do século XIX até os anos 1960 – ocupou igualmente lugar de destaque nas discussões de médicos e juristas. Em geral, os(as) “invertidos(as)” eram apresentados(as) como “aberrações” a serem explicadas ou, na melhor das hipóteses, como doentes que deveriam ser quando possível tratados. Como acontecia com as prostitutas, os corpos de “homossexuais”, “invertidos” ou “hermafroditas” também foram examinados, fotografados, manipulados, esquadrinhados e, em livros e aulas, exibidos à exaustão pela ciência. Nesse sentido, merece destaque a obra Homossexualismo e Endocrinologia, do médico-legista brasileiro Leonídio Ribeiro, primeiro diretor do Gabinete de Identificação da Polícia do Distrito Federal e professor da escola de Direito que, atualmente, faz parte da UERJ. Merecedor do “Prêmio Lombroso-1933”, o livro exibia os corpos nus de dezenas de homossexuais que, presos por vadiagem na cidade do Rio de Janeiro, foram compulsoriamente examinados por Ribeiro. O médico os expunha aos olhares interessados em descobrir neles aspectos femininos (supostamente produzidos por disfunções hormonais). Abaixo, temos alguns exemplos dessas perturbadoras imagens:

As transformações da moralidade no pós-guerra incluíram no cerne da luta política uma nova classe de direitos: os direitos sexuais e reprodutivos. O gênero e a sexualidade deixaram de ser temas discutidos apenas no gabinete (e laboratório) de cientistas ou em consultórios médicos, para ganhar as ruas, os parlamentos, a mídia. Os embates com a medicina, aí incluída a saúde pública, foram e são centrais em tais disputas. Disso, testemunham os enfrentamentos de organizações feministas (contra o controle indiscriminado da natalidade, contra o parto medicalizado, contra a farmacologização da sexualidade), do movimento das prostitutas contra campanhas e pesquisas que as tratam como “grupos de risco” e/ou vetores de doença e de organizações LGBT (contra patologização da homossexualidade em passado recente e agora contra a patologização da transexualidade).

De certo modo, toda essa conflituosa história estava em jogo na comemoração do Puta Dei, realizada no auditório do IMS, local de defesas de teses e dissertações e, portanto, de consagração do conhecimento científico. Em cena, o corpo sempre desnudado, examinado, exibido e, por isso mesmo, controlado pela ciência tomava a palavra e, em seus próprios termos, interpelava politicamente a instituição acadêmica. Por um instante, seu gesto de profanação subverteu os jogos de poder que, no campo científico, tradicionalmente subjazem ao espetáculo da exibição pública de corpos nus e de suas “estranhezas”. Seu corpo despojado reivindicava corajosamente uma comum humanidade (afinal, todos nascemos nus…) e denunciava o papel que a ciência desempenhou e continua a desempenhar no secular processo de patologização, desumanização e abjecção de pessoas cujos corpos e desejos são culturalmente considerados inadequados e indesejáveis. Finalmente, convidava a plateia de alunos, professores e pesquisadores a sonhar com uma ciência outra que, ao invés disso, possa ser instrumento de humanização, de inclusão, de cidadanização. Não à toa, parece-nos, a performance ocorreu justamente na UERJ e justamente no IMS, lugares em que há algumas décadas esse sonho vem sendo sonhado através da formulação de um pensamento crítico e socialmente engajado.

O gesto de Tertuliana não valeria de nada se só provocasse risos nervosos, rumores, rubores; se apenas motivasse o escândalo ou o loquaz silêncio do arquear desaprovador de sobrancelhas. Ele demanda muito mais de nós. Exige, sobretudo, uma profunda reflexão sobre nossas práticas de pesquisa, nossos conceitos e nossos preconceitos; e no âmbito do UERJ Resiste, nossas formas de resistir. Aliás, era de resistência que falava o cordel Sertransneja, de Lidi Oliveira, apresentado por ela como parte de sua performance:

Mando notícias pro meu Nordeste/O clima aqui tá cabra da peste!/ Mas seja na rua ou na letra do rap/Minha irmã, não se avexe!/Só a gente sabe a dor no nosso canto/Só a gente sabe o valor do nosso pranto/Prometemos resistir, você lembra?/Minha irmã, não desista, tenta!/Não tem volta, nosso nome é revolta./Não tem volta, nosso nome é revolta./Quem for nos derrubar: dê meia volta! /Nossas ideias são mais perigosas que um fuzil/Nasceram nos becos desse tal Brasil/Nossa luta é à prova de bala/A repressão não me abala/Defenda a alegria e organize a raiva! […] E nessa sina de lutar/São tantas referências/Quantas Marias Bonitas!/Tantas Marias da Penha!/Ser nordestina/Ser travesti, sapatão, favelada, preta, puta, indígena…/Não é nenhum xingamento!!/E existe só um mandamento:/Resistir a todo momento!

A nudez da Tertuliana, de fato, nos desnudou e continua a nos desnudar. E é justamente por isso que, agradecendo aos organizadores pela ousada seriedade do evento, e a Tertuliana pela séria ousadia de nos expor a sua performance, consideramos fundamental continuar a falar sobre isso.

 

 

 

 

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