Análise: Camilla Medeiros Macedo da Rocha, Amanda de Moura Souza, Rosely Sichieri e Katia Bloch
O Estudo de Risco Cardiovascular em Adolescentes (ERICA), conduzido em 2013-2014, avaliou 71.298 adolescentes de 12 a 17 anos de idade. Trata-se de um estudo transversal de âmbito nacional realizado com escolares, cujos dados de consumo alimentar foram obtidos utilizando o recordatório de 24 horas. Neste informativo, reportamos os dados relativos aos adolescentes do Estado do Rio de Janeiro. O objetivo é mostrar quão inadequado é o consumo alimentar desses adolescentes.
A tabela 1 mostra os percentuais de consumo de alimentos ou grupos de alimentos referidos em um único dia e permite avaliar a importância daquele item no consumo alimentar. Foram avaliados 4.923 adolescentes, regularmente matriculados em escolas públicas ou privadas do Estado do Rio de Janeiro, que possuíam dados de consumo alimentar completo de um dia. Assim, por exemplo, em um recordatório de 24 horas, 84% dos adolescentes referiram o consumo de arroz.
Tabela 1- Frequência de consumo de alimentos ou grupo de alimentos em adolescentes do Estado Rio de Janeiro. Erica, 2013-2014
Assim como em outras pesquisas nacionais e locais, os adolescentes mantêm o hábito alimentar nacional à base de arroz e feijão, que são os dois itens consumidos com maior frequência; contudo, o consumo de refrigerantes aparece em terceiro lugar. Nos dados nacionais e para a Região Sudeste do ERICA, o refrigerante só aparece como o sexto alimento mais consumido, independentemente da faixa etária e do sexo, marca superada apenas pela Região Sul, em que ele aparece como o quinto alimento mais consumido pelos adolescentes. Em todas as regiões, à exceção da Sul, o consumo de sucos e refrescos supera o de refrigerante (Souza et al., 2016), mas no Brasil e nessa faixa etária, adiciona-se muito açúcar.
O consumo de refrigerantes e de bebidas adoçadas em geral é um fenômeno recente. Mudanças rápidas nos hábitos alimentares – neste caso, com a adoção do consumo frequente de bebidas com grandes quantidades de açucares e, consequentemente, calorias –, dificilmente são acompanhadas de mudanças na fisiologia dos organismos, o que pode explicar por que o corpo humano não registra (compensa) bem o consumo de energia na forma líquida. Este fenômeno tem sido documentado inclusive em estudos realizados na população brasileira (Gombi-Vaca et al., 2016). É importante ressaltar que o consumo de refrigerantes e outras bebidas adoçadas é mais frequente em adolescentes do que em adultos e idosos, e que seu consumo tem sido associado a várias doenças, em particular obesidade e diabetes (Malik et al., 2013).
O aumento do consumo de bebidas adoçadas é tão preocupante que vários países têm leis e recomendações importantes visando a sua redução. Neste sentido, o México obteve uma redução de consumo dessas bebidas com uma taxação extra das bebidas açucaradas (Colchero et al., 2016). No Brasil, embora exista um grande esforço para reduzir o consumo das bebidas adoçadas, particularmente dos refrigerantes, pressões importantes da indústria inviabilizam ações de âmbito mais coletivo. Os biscoitos também aparecem em destaque no consumo dos adolescentes do Estado do Rio de Janeiro e no país como um todo. Esse grupo da tabela engloba os biscoitos doces, salgados e recheados, outro importante marcador de uma alimentação muito inadequada. Entre os alimentos ultraprocessados, os biscoitos figuram entre os cinco itens de maior contribuição calórica.
O consumo de alimentos ultraprocessados vem sendo propugnado há algum tempo como o grande fator de risco para as doenças crônicas e, após vários estudos observacionais, recentemente seu consumo foi associado com a mortalidade geral (Anaïs Rico-Campà et al., 2019), assim como com a obesidade, em um ensaio clínico altamente controlado (Hall et al., 2019).
Chama ainda atenção nos dados da tabela 1 a frequência de consumo de bebidas lácteas, maior do que do leite. O que poucos sabem é que este termo se refere à mistura do leite (na proporção de 51%) com o soro do leite, um subproduto da produção de queijos que, embora não seja impróprio para consumo humano, possui muito menos nutrientes do que o leite, principalmente proteínas e cálcio, que ficam na estrutura dos queijos. Para tornar o sabor agradável ao paladar, ainda são adicionados de aromatizantes, na maior parte artificiais, e grande quantidade de açúcar.
O que fazer para mudar esse padrão de consumo? Não há uma resposta simples, não adianta querer fazer só orientação alimentar e nutricional para os escolares. Cada vez mais, a busca de respostas tem que ser ampliada para o sistema alimentar. A abordagem sindêmica, que engloba múltiplas condições adversas que ocorrem simultaneamente no tempo e no espaço e interagem de forma sinérgica, tem sido utilizada para explicar vários agravos (Swinburn et al., 2019) e em janeiro de 2019, a revista científica Lancet publicou ampla análise sindêmica para a obesidade e desnutrição, com ênfase no sistema alimentar. Um longo caminho a percorrer em um momento que políticas públicas na área da saúde estão sendo destruídas.
Referências
Anaïs Rico-Campà et. al. Association between consumption of ultra-processed foods and all-cause mortality: SUN prospective cohort study. BMJ. 2019; 365: l1949.
Colchero MA et al. Beverage purchases from stores in Mexico under the excise tax on sugar sweetened beverages: observational study. BMJ. 2016; 352: h6704.
Gombi-Vaca MF, Sichieri R & Verly E Jr. Caloric compensation for sugar-sweetened beverages in meals: a population-based study in Brazil. Appetite. 2016; 98: 67-73.
Hall KD et al. Ultra-Processed Diets Cause Excess Calorie Intake and Weight Gain: An Inpatient Randomized Controlled Trial of Ad Libitum Food Intake. Cell Metab. 2019; 30: 67-77.
Malik VS et al. Sugar-sweetened beverages and weight gain in children and adults: a systematic review and meta-analysis. Am J Clin Nutr. 2013; 98: 1084–1102.
Souza AM et al. ERICA: ingestão de macro e micronutrientes em adolescentes brasileiros. Rev Saúde Pública. 2016; 50: 5S.
Swinburn BA et al. Global Syndemic of Obesity, Undernutrition, and Climate Change. Lancet. 2019; 393:791-846.