Publicado originalmente no site da Abrasco.
Os idosos têm sido os mais vulneráveis diante da pandemia da Covid-19 por conta de comorbidades que aumentam os casos de óbito nesse segmento da população. Diante desse quadro, Luis Eugenio de Souza, Presidente Abrasco (2012-2015), atual coordenador do Comitê de Relações Internacionais e integrante do Conselho Deliberativo da Associação, traz a tradução deste artigo sobre as questões que podem afetar a população idosa diante da pandemia do coronavírus em países de baixa e média renda. O artigo é liderado por Peter Lloyd-Sherlock (School of International Development, University of East Anglia, Norwich, UK), em co-autoria com Leon Geffen (Samson Institute For Ageing Research (SIFAR), Cape Town, South Africa); Shah Ebrahim e Martin McKee (London School of Hygiene and Tropical Medicine, London, UK). No texto, aponta-se a necessidade reconhecimento das especificidades enfrentadas pela população idosa, que deve estar presente nas políticas a serem elaboradas em plano global e nacional para as respostas ao coronavírus.
Confira o artigo traduzido.
SUPORTANDO O PESO DA COVID-19: IDOSOS EM PAÍSES DE BAIXA E MÉDIA RENDA
Por: Peter Lloyd-Sherlock (School of International Development, University of East Anglia, Norwich, UK); Leon Geffen (Samson Institute For Ageing Research (SIFAR), Cape Town, South Africa); Shah Ebrahim e Martin McKee (London School of Hygiene and Tropical Medicine, London, UK)
Tradução: Luis Eugenio de Souza ( Instituto de Saúde Coletiva da UFBA)
Um grupo global de especialistas em idosos pode ser útil
A resposta global inicial à Covid-19 foi descrita como insuficiente e tardia.1 Agora, os esforços nacionais e internacionais estão entrando em ritmo acelerado. Um conjunto crescente de pesquisas tem gerado diretrizes que são regularmente publicadas por autoridades nacionais e internacionais, cobrindo informações atualizadas sobre o vírus, seu modo de transmissão, sua disseminação e a suscetibilidade de diferentes grupos populacionais.
Embora muitos aspectos dessa nova infecção permaneçam incertos, uma coisa já está clara. O risco de morrer de Covid-19 aumenta com a idade, e a maioria das mortes observadas ocorre em pessoas com mais de 60 anos, especialmente aquelas com condições crônicas, como doenças cardiovasculares. Isso tem implicações importantes para a organização das ações controle da doença, sejam as de prevenção, sejam as de diagnóstico e tratamento. No entanto, até o momento, as orientações têm ignorado esse problema, não apenas nos países de alta renda,2 mas também nos países de baixa e média renda, onde vivem 69% da população mundial com 60 anos ou mais e onde os sistemas de saúde são mais frágeis e o Covid-19 pode vir a ter maior impacto.
Quatro preocupações
No contexto dos países de baixa e média renda, há pelo menos quatro questões a serem consideradas.
A primeira é a mudança da dinâmica familiar. Mudanças no mercado de trabalho levaram a que, em muitos países, um ou ambos os pais vivam e trabalhem em locais distantes das suas residências, obrigando-os a deixarem os filhos com os avós. As melhorias nos cuidados de saúde permitiram que muitas dessas pessoas mais velhas sobrevivessem com distúrbios crônicos que, em épocas anteriores, as teriam matado. Se contraírem a Covid-19 ou, pior, se morrerem, as implicações para suas famílias extensas serão profundas, indo além do sofrimento e do luto, especialmente quando os membros da família que trabalham no exterior não conseguem retornar rapidamente. Além disso, as funções de cuidador que os avós assumem oferecem um risco adicional de exposição para eles, pois impede que se isolem em caso de necessidade.
Uma segunda preocupação se refere ao elevado número de pessoas muito idosas que está sendo atendido em casas de repouso ou abrigos nos países de baixa e média renda.3 Essas casas e esses abrigos geralmente não são regulamentados e oferecem cuidados de qualidade muito baixa. Ademais, instituições nas quais as pessoas vivem próximas, como prisões, podem atuar como incubadoras de infecções.4 Já existem evidências das casas de repouso como fontes de disseminação desse vírus em países de alta renda5, e não seria surpreendente se a ameaça fosse ainda maior nos países de baixa renda. Nos países ricos, os residentes dessas instituições são altamente dependentes de seus funcionários e um surto grave, que algumas estimativas sugerem que poderia afetar até 60% da população,6 teria sérias implicações no bem-estar e na sobrevivência dessas pessoas. Nos países de baixa e média renda, o risco de infecção pode ser tão ou mais alto ainda para as pessoas idosas que vivem nessas casas de repouso, dadas a superlotação e as condições muitas vezes precárias.
Um terceiro problema é a capacidade dos sistemas de saúde de lidar com aumentos da demanda, especialmente para atender aqueles que precisam de suporte respiratório, a maioria dos quais é mais velha. Os sistemas de saúde dos países de baixa e média renda enfrentam severas restrições de capacidade e provavelmente não conseguirão oferecer os cuidados necessários no momento da epidemia, especialmente se a Covid-19 comprometer ainda mais o quantitativo de trabalhadores de saúde – já reduzido por emigração, salários baixos e más condições de trabalho7 – e a já limitada expertise em gerontologia.
Em muitos países de baixa e média renda, os idosos já enfrentam grandes barreiras de acesso a serviços de saúde, incluindo a discriminação por idade.8 A disseminação global da Covid-19 e seu impacto sobre as pessoas idosas correm o risco de aumentar a desigualdade nos sistemas de saúde e a marginalização dos idosos. A capacidade dos sistemas de saúde nesses países de tratar ou mesmo de apenas rastrear os casos de Covid-19 será muito limitada. Na África do Sul, cada teste custa cerca de US$ 75 – mais do que o gasto total em saúde do governo em muitos países de baixa e média renda, como Bangladesh ($ 34), Benin ($ 30) ou Haiti ($ 38).9 Máscaras N95 estão em falta e custam cerca de US$ 9 cada na África do Sul.
Uma quarta questão diz respeito à capacidade dos idosos de se adequarem às medidas de controle sanitário impostas pelas autoridades. As políticas de distanciamento social devem considerar a existência já precária de muitos idosos, principalmente aqueles que vivem sozinhos ou dependem de outros para receber cuidados. Esses idosos podem enfrentar dificuldades para a obtenção de alimentos e outros suprimentos essenciais se as condições de quarentena se generalizarem. Os formuladores de políticas devem ter em mente que um grande número de idosos em países de baixa e média renda é analfabeto.
Reconhecer o problema
Não será fácil lidar com esses problemas, especialmente em locais onde geralmente são insuficientes a infraestrutura de saúde pública, a expertise em gerontologia e a confiança no governo. De todo modo, um primeiro passo importante seria reconhecer que esses problemas existem. No planejamento das ações de enfretamento da Covid-19, nos planos global e nacional, é fundamental contemplar as necessidades específicas das diferentes faixas etárias da população. Em particular, haja vista o risco maior da Covid-19 para os idosos, um grupo mundial de especialistas em gerontologia deve ser formado para apoiar com orientações a resposta à epidemia em instituições de residência e cuidados para idosos. À medida que se produzem novos conhecimentos, esse grupo poderá identificar e avaliar terapias e intervenções sociais que atendam às necessidades específicas de idosos em países de baixa e média.
Antes da Covid-19, alguns dos autores deste texto já argumentavam que a definição de prioridades de saúde global está institucionalmente envelhecida.10 A Covid-19 oferece uma oportunidade para mostrar que estávamos errados.
Agradecimentos
Agradecemos a Rachel Albone, John Beard, Alex Kalache, Des O’Neill, Siriphan Sasat e Lucas Sempe por suas contribuições para este editorial. O apoio também foi dado por Justin Derbyshire (HelpAge International), Jane Barratt (Federação Internacional do Envelhecimento), Srinath Reddy (Fundação de Saúde Pública da Índia), Jacqueline Angel (Tesoureira da Associação Internacional de Geriatria e Gerontologia), Carlos André Uehara (Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia), Piu Chan (Centro Nacional de Pesquisa Clínica para Distúrbios Geriátricos, China) e Enrique Vegas (Organização Pan-Americana da Saúde).
Referência:
- The Lancet. COVID-19: too little, too late? Lancet 2020; 395:755. doi:10.1016/S0140-6736(20)30522-5 pmid:32145772
- Basu S, Stuckler D, McKee M. Addressing institutional amplifiers in the dynamics and control of tuberculosis epidemics. Am J Trop Med Hyg 2011;84:30-7. doi:10.4269/ajtmh.2011.10-0472 pmid:21212197
- Boodman E, Branswell H. First Covid-19 outbreak in a US nursing home raises concerns. 2020. Feb 29. https://www.statnews.com/2020/02/29/new-covid-19-death-raises-concerns-about-virus-spread-in-nursing-homes/
- Anderson RM, Heesterbeek H, Klinkenberg D, et al. How will country-based mitigation measures influence the course of the COVID-19 epidemic?Lancet2020. [Epub ahead of print.] doi:10.1016/S0140-6736(20)30567-5
- World Health Organization. A universal truth: no health without a workforce. WHO, 2013.
- Sleap B. The freedom to decide: what older people say about their rights to autonomy and independence. 2018. https://www.helpage.org/blogs/bridget-sleap-24/the-freedom-to-decide-what-older-people-say-about-their-rights-to-autonomy-and-independence-1059/
- World Bank. World development indicators 2020. Current health expenditure per capita (current US$). https://data.worldbank.org/indicator/SH.XPD.CHEX.PC.CD
- Lloyd-Sherlock PG, Ebrahim S, McKee M, Prince MJ. Institutional ageism in global health policy. BMJ2016;354:i4514. doi:10.1136/bmj.i4514 pmid:27582131