Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro

Violência doméstica e COVID-19 no Brasil

Claudia Leite de Moraes, Emanuele Souza Marques e Maria Helena Hasselmann, pesquisadoras integrantes do Programa de Investigação Epidemiológica da Violência Familiar (PIEVF/IMS/UERJ), elaboraram perguntas e respostas sobre o problema da violência familiar no contexto da Covid-19 no Brasil. Confira.

Claudia Leite de Moraes, Emanuele Souza Marques e Maria Helena Hasselmann, pesquisadoras integrantes do Programa de Investigação Epidemiológica da Violência Familiar (PIEVF/IMS/UERJ), elaboraram perguntas e respostas sobre o problema da violência familiar no contexto da Covid-19 no Brasil.

1) Por que se preocupar com a violência intrafamiliar em tempos de COVID-19?

A pandemia do novo coronavírus (SARS-CoV-2), causador da COVID-19, tem alterado a rotina dos indivíduos ao instalar uma crise sanitária, econômica e social sem precedentes em todo o mundo. Além dos sintomas clínicos e da gravidade da própria doença, há ainda a questão da velocidade da transmissão que faz com que os serviços de saúde disponíveis não tenham capacidade suficiente para oferecer os cuidados em saúde exigidos pela doença na maioria dos países. Na ausência de uma vacina específica e de medicamentos comprovadamente eficazes, a principal medida de saúde pública recomendada pela Organização Mundial da Saúde e empregada nos diferentes países para o “achatamento da curva”, ou seja, para a redução da velocidade de transmissão, é o isolamento social. Em tal isolamento, busca-se que toda a população, exceto os trabalhadores de serviços essenciais, permaneça em casa, indo à rua somente para compras de alimentos, ida à farmácia e aos serviços de saúde, quando necessário. A suspensão das atividades das creches, das escolas e das universidades e a indicação de trabalho em casa fazem parte das estratégias para a redução da circulação de pessoas e da aglomeração e para a permanência em casa.

Neste contexto, tem sido observado que os casos de violência familiar e doméstica vêm aumentando em diferentes países. Inicialmente na China e depois na Itália, França, Espanha, Polônia, Argentina e outros.  Inicialmente, o elevado número de casos de violência doméstica contra a mulher e do feminicídio chamaram a atenção, passando a ser alvo de denúncias e alertas constantes aos gestores responsáveis pelas políticas de contingenciamento, aos serviços da rede de proteção aos grupos mais vulneráveis, aos profissionais de saúde e à sociedade em geral. Na sequência, outras formas de violência doméstica, como a violência contra crianças e adolescentes e contra idosos também entrou na pauta das discussões em função do aumento do número de casos após o isolamento social, já que para muitos e muitas, o lar não é um espaço seguro.

No Brasil, o cenário é semelhante e bastante preocupante, o volume de denúncias de violência contra a mulher, dos casos não letais ao feminicídio cresceram em relação as estatísticas anteriores à pandemia em diferentes cidades brasileiras. Segundo dados divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, no Brasil, houve um aumento de cerca de 17% no número de ligações com denúncias de violência contra a mulher durante o mês de março, primeiro mês da implementação do isolamento social em grande parte do país. Já alguns indicadores que estimam a frequência de violências às crianças, adolescentes e idosos diminuíram em algumas cidades chamando a atenção da sociedade para a possibilidade de subnotificação graças ao isolamento.

2) Quais são as condições propícias à violência durante a pandemia?

O estresse causado pela gravidade da pandemia, expressa pelo grande número de casos, internações e óbitos, a todo momento noticiados nos meios de comunicação, associado à sobrecarga de trabalho em casa decorrente do autocuidado, dos cuidados com crianças, adolescentes, idosos, familiares doentes e com o ambiente doméstico são alguns fatores que propiciam a ocorrência de violência doméstica, especialmente contra crianças adolescentes e idosos. O maior tempo com os agressores, o maior controle e poder do mesmo sobre a vítima, além da redução do contato com a rede psicossocial de apoio individual e coletivas, tais como amigos, família, trabalho, escolas etc. também aumentam o risco de diferentes formas de violência em casa, especialmente contra mulheres.

No caso da violência contra a mulher, especificamente, restrições de movimento, limitações financeiras e insegurança generalizada encorajam os abusadores, dando-lhes poder e controle adicionais. O abuso de álcool e drogas, mais frequente em situações de crise, também compõe o quadro que pode levar a intensificação e a ocorrência de casos novos de violência. A convivência durante 24 horas/dia e a impossibilidade de privacidade, especialmente em domicílios pequenos, limita a possibilidade de denúncia com segurança, desencorajando a mulher a tomar esta decisão, mantendo-se a situação. O aumento do nível de estresse do agressor gerado pelo medo de adoecer, a incerteza sobre o futuro, a impossibilidade de convívio social, além da iminência de redução de renda e desemprego contribuem para um maior risco. A sobrecarga feminina com o trabalho doméstico e o cuidado com a família também pode diminuir sua capacidade de evitar o conflito com o agressor, além de torná-la mais vulnerável à violência psicológica e à coerção sexual. O medo da violência atingir seus filhos, restritos ao domicílio, é mais um fator paralisante que dificulta a busca de ajuda. Por fim, a dependência financeira com relação ao companheiro em função da estagnação econômica e da impossibilidade do trabalho informal devido à quarentena é outro aspecto que reduz a possibilidade de rompimento da situação.

No caso de crianças e adolescentes, a  sobrecarga dos cuidadores, o maior tempo em casa e o estresse de toda a família em função do medo de adoecer, das incertezas sobre o futuro, da instabilidade econômica e das dificuldades de garantir os recursos para a subsistência, além da quebra de uma rotina diária também aumentam os conflitos, propiciando as violências. É importante ressaltar que as crianças e adolescentes sentem muito a falta dos colegas e da família ampliada, da possibilidade de ir e vir, das atividades ao ar livre e do convívio com outros integrantes de suas redes sociais. Estas dificuldades podem não ser plenamente resolvidas por crianças e adolescentes por falta de recursos psicológicos, já que ainda estão em fase de desenvolvimento, levando a diferentes manifestações, dentre as quais a depressão, ansiedade, perda do sono, instabilidade emocional, enurese noturna e irritabilidade, que também dificultam uma convivência harmônica na família. O aumento do tempo de convivência, bem como a elevação das tensões nas relações interpessoais, são fatores que também podem elevar a ocorrência de episódios de violência contra criança neste período. De particular interesse são as violências no meio virtual e o cyberbullying, especialmente no caso de adolescentes em função do maior tempo destes na INTERNET. Há ainda os riscos de perda ou separação dos pais devido ao isolamento/quarentena, o que pode tornar a criança desassistida. Tais dificuldades são particularmente visíveis em famílias em situação socioeconômica desfavorável.

Um outro grupo muito vulnerável à violência doméstica durante a COVID-19 são os idosos. Além do estresse intenso e da necessidade de cuidados especiais por fazerem parte do grupo de risco para casos mais graves que podem levar, inclusive, ao óbito, o isolamento também traz muitos “efeitos colaterais”, tanto para aqueles que vivem com seus familiares, como para os que moram com cuidadores profissionais, sozinhos ou residem em instituições de longa permanência. Os problemas vão desde a falta de recursos para a compra de alimentos, baixo acesso aos serviços de saúde, dificuldade para acesso às medicações de uso contínuo, falta de acesso à água, sabão e outros produtos preconizados para a higiene pessoal e do ambiente domiciliar, até as dificuldades nas relações interpessoais. Neste cenário, aumenta o risco de violência doméstica psicológica, física, sexual, negligência, financeira, dentre outras, praticadas por membros da família e/ou cuidadores. Estas violências decorrem de um desequilíbrio e interação entre fatores protetores e fatores de risco sociais, comunitários, relacionais e individuais. No âmbito social, tais fatores envolvem o preconceito e a falta de políticas específicas para os idosos nas propostas de enfrentamento da pandemia que garantam a continuidade do cuidado e os seus direitos constitucionais, saúde e bem estar. Na dimensão comunitária, o isolamento social e o medo de transmissão da doença promovem uma redução importante da ação das redes sociais de apoio familiares e comunitárias, intensificando os sentimentos de solidão e abandono. Além disto, a falta de contato presencial com familiares e instituições de apoio reduz a visibilidade de casos já instalados, sendo terreno fértil para a intensificação da violência. No campo relacional, pode haver um aumento dos conflitos e da dependência dos cuidadores em função do estresse familiar exacerbado, da redução progressiva da funcionalidade e da redução da rede social de cuidado. No âmbito individual, a descompensação de patologias crônicas, o aumento do déficit cognitivo, a depressão e a ansiedade podem ser fatores que os tornam ainda mais vulneráveis. Soma-se a este cenário a sobrecarga do cuidador, muitas vezes, o único a manter o contato físico e a responsabilidade de prover os cuidados necessários ao idoso.

3) O que fazer para prevenir a violência? 

Considerando que o isolamento social é a única estratégia com evidências científicas em prol da redução da velocidade de transmissão da COVID-19, visando ao “achatamento da curva” e não sobrecarga dos serviços de saúde, esta deve ser seguida por todos os países que apresentam transmissão comunitária do COVID-19. Desta maneira, a elaboração e implementação de ações de prevenção da violência doméstica neste período se tornam de extrema relevância. Diversas instituições e organizações sociais nacionais e internacionais têm elaborado materiais para a conscientização da sociedade sobre o aumento da violência dentro do domicílio, bem como para sua prevenção durante este período de isolamento social. Levando em consideração estas publicações e o que vem sendo desenvolvido em diferentes países, elencamos algumas ações que consideramos importantes para a prevenção da violência neste momento:

  • Garantir o atendimento 24 horas dos canais para realização de denúncias de violência: Ligue 180, Disque 100 (violação aos direitos humanos) e 190 (Polícia Militar);
  • Manutenção do trabalho dos Conselhos Tutelares durante a pandemia, seja via plantão presencial ou via remota;
  • Garantir a agilidade do julgamento das denúncias de violências com o intuito de instalar medidas protetivas de urgência, quando necessárias;
  • Reforçar as campanhas publicitárias sobre a importância de que todos “metam a colher em brigas” familiares, seja contra mulheres, crianças, adolescentes e idosos;
  • Ofertar atendimento psicossocial para os familiares e cuidadores que estejam com muita dificuldade de manter o equilíbrio e uma boa saúde mental durante a pandemia;
  • É importante que famílias em situação de violência busquem fazer o isolamento social com outros familiares que não apenas com o agressor;
  • Utilizar de disciplina positiva para resolução de possíveis conflitos entre pais e filhos;
  • Desenvolver e divulgar estratégias de relaxamento para toda a família, especialmente para os cuidadores de crianças e idosos;
  • Dividir o trabalho doméstico e o cuidado com crianças, adolescentes e idosos entre os adultos do domicílio para não sobrecarregar as mulheres.

4) Como interromper as situações já instalada? Qual o papel das vítimas, vizinhos, familiares e amigos?

Diante das dificuldades que já apontamos de crianças, adolescentes, mulheres e idosos em fazer a denúncia de violência e procurar ajuda, especialmente em período de isolamento social, destacamos o papel dos vizinhos e familiares, pois estes, muitas vezes, são os que teriam melhores condições de realização das denúncias de violência, já que não estão diretamente expostos aos agressores.

Os vizinhos, amigos e familiares têm que se conscientizar que em “briga de marido e mulher” é preciso meter a colher. Também é preciso chamar a atenção dos pais sobre a importância de uma educação positiva de crianças e adolescentes, em contraposição à violência. Também precisamos desenvolver atividades visando a garantia dos direitos dos idosos de maneira geral e em especial o direito a uma vida sem violência. Na proteção de crianças e adolescentes, o papel da vizinhança e da família expandida também é fundamental, seja orientando e compartilhando estratégias não violentas para a solução de conflitos, seja identificando os casos suspeitos e acionando a rede de proteção. É importante deixar claro que a denúncia de um caso suspeito de violência é o pontapé inicial para o desencadear de diversas ações visando auxiliar a família a lidar com a situação quando possível ou a aplicação de medidas mais extremas protetivas quando indicadas. Desta forma, é preciso ficarmos atentos às situações suspeitas (gritos; choros; discussões em voz alta; ameaças; perda de contato com familiares etc.). Não exite em ser solidário àqueles que são vítimas de violência. As denúncias anônimas podem evitar situações mais graves e até a morte.

5) Como anda funcionando a rede de proteção neste momento? Quais as iniciativas governamentais e da sociedade civil para a proteção de crianças, mulheres e idosos?

Além dos canais para realização de denúncias via telefone (Ligue 180, Disque 100 e 190) e internet (Ministério Público), o Governo brasileiro disponibilizou no mês de março o aplicativo “Direitos Humanos Brasil” para recebimento de denúncias de violência doméstica. Além disso, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) recentemente divulgou um material informativo com enfoque na violência contra a mulher neste período (https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2020-2/abril/ministerio-realiza-acao-de-enfrentamento-a-violencia-em-condominios). O material tem como objetivo conscientizar mulheres sobre possíveis situações de violência e disponibilizar canais de ajuda para estas momento de pandemia, bem como de denúncia para vizinhos e familiares diante de casos suspeitos. Além destes canais, as delegacias de mulheres e delegacias comuns mantém o funcionamento 24 horas. No caso das crianças e adolescentes, os Conselhos Tutelares têm trabalhado em regime de plantão reduzido presencial e via telefone, WhatsApp, denúncias virtuais e aplicativos para celulares durante à pandemia de COVID-19.

Lembrando que os casos de violência contra crianças e adolescentes, pessoas idosas e deficientes devem ser comunicados imediatamente às autoridades competentes. No caso de violência contra crianças e adolescentes é obrigatória a comunicação ao Conselho Tutelar. O Conselho Tutelar tem como atribuição verificar a situação da criança ou adolescente e acionar o Ministério Público, a Autoridade Policial e/ou a Justiça, quando houver necessidade. O Estatuto da Pessoa Idosa estabelece que os casos de violência praticada contra idosos serão obrigatoriamente comunicados a autoridade policial; Ministério Público e/ou Conselho da Pessoa Idosa. Quanto às pessoas com deficiência, a Lei nº 13.146 de 06/07/2015 indica que a Autoridade Policial seja acionada. Em caso de dúvida sobre quais órgãos atendem pessoas em situação de vulnerabilidade, é possível consultar: Secretarias de Saúde, Secretarias de Assistência Social, Secretarias da Equidade e/ou Mulher, Ministério Público, Defensoria Pública, Delegacias Especializadas, Conselhos Tutelares e Conselhos de Direitos do seu município.

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