domingo, maio 5, 2024
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Caso Genivaldo: necropolítica, autoritarismo e desmonte – entrevista com o professor Rogério Paes Henriques (UFS)

Rogério Paes Henriques, sobre o caso Genivaldo: Não creio que nesse caso foi o estigma da doença mental que teria levado os policiais a agirem com extrema brutalidade, pelo contrário, talvez a certeza do diagnóstico pudesse ter funcionado como atenuante favorável ao sujeito abordado na operação policial.

A morte de Genivaldo de Jesus Santos, no final de maio, durante abordagem da Polícia Rodoviária Federal (PRF), no Sergipe, produziu uma onda de indignação e incredulidade. Aposentado por ser portador de esquizofrenia, Genivaldo foi detido por agentes na cidade de Umbaúba ao conduzir sem capacete a moto. Na interpelação, ele foi imobilizado e trancado no porta-mala da viatura com parte das pernas deixadas de fora. Gás lacrimogêneo foi atirado no compartimento fechado. O laudo emitido pelo IML apontou morte por asfixia mecânica e insuficiência respiratória.

A cena macabra, filmada e difundida amplamente pelos meios de comunicação, constitui novo capítulo de um enredo histórico de violência contra portadores de transtornos mentais graves. Mas não só: conforme a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) apontou em nota, o caso espelha igualmente o padrão de práticas e violações racistas, perpetradas pelo Estado, que determinam quem morre e quem vive no Brasil. Nos dias subsequentes ao episódio, tanto a PRF quanto o presidente Jair Bolsonaro minimizaram e buscaram eximir responsabilidades, contornando as evidências da violência e desacreditando a vítima.

A necropolítica é um dos aspectos abordados na entrevista que o psicólogo e doutor em Saúde Coletiva Rogério Paes Henriques, professor da Universidade Federal de Sergipe (UFS), concedeu ao IMS/Uerj para avaliar o episódio. Na conversa, ele analisa a falta de preparo dos policiais para identificar a condição de Genivaldo, o que poderia ter levado a outro desfecho, e situa a morte no contexto de radicalização e discurso de ódio promovido pelo governo federal – lembrando, inclusive, a semelhança da resposta da PRF com outro caso emblemático de morte provocada por forças de segurança (ônibus 174, no Rio de Janeiro, no ano 2000). A partir de sua experiência de atuação como psicólogo no Programa Saúde da Família, Rogério Paes também avalia o estado atual de desmonte das políticas e redes de assistência em saúde mental.  

Leia abaixo a entrevista.

IMS/Uerj: Como o estigma da condição psiquiátrica potencializa os riscos de episódios como este?
Rogério Paes Henriques: Acredito que, nesse caso específico do Genivaldo de Jesus Santos, o diagnóstico psiquiátrico poderia até ter auxiliado na abordagem dos policiais, uma vez que se requer tratar os diferentes de modo diferente. A questão é que o trataram como se ele não tivesse um transtorno mental grave, como se a agitação por ele apresentada fosse mera reação à prisão – espécie de afronta aos policiais, de desacato à autoridade -, e não como sintoma típico de um esquizofrênico que se depara com uma situação adversa que saia do seu aparente controle. Não creio que nesse caso foi o estigma da doença mental que teria levado os policiais a agirem com extrema brutalidade, pelo contrário, talvez a certeza do diagnóstico pudesse ter funcionado como atenuante favorável ao sujeito abordado na operação policial.

IMS/Uerj: Essa falta de preparo faz pensar no processo de formação dos agentes. É possível tirar alguma conclusão sobre a relação entre forças de segurança e abordagem de indivíduos com transtornos mentais?
RPH – Não tenho conhecimento da formação dos policiais rodoviários federais sobre questões envolvendo a saúde mental, mas, em se tratando da brutalidade da ação, creio que tal formação, se existe, é bem defasada. Já havia precedente de um tipo de reação similar da parte de Genivaldo numa outra abordagem policial, perante a qual ele não tinha capacidade de discernimento.

Estarrece-me o fato de que um dos policiais envolvidos na morte de Genivaldo, Paulo Rodolpho Lima Nascimento, participaria de uma live com o tema “Trânsito: aspectos jurídicos e de saúde mental ao volante”. Ou seja, o policial atuava como um educador em saúde mental!

Há de fato um despreparo flagrante, mas isso não explica tudo, já que nas periferias brasileiras os policiais costumam encarnar a própria lei como suposta forma não oficial de enfrentamento à bandidagem – e isso com a conivência do Estado e de boa parte da população. Haveria que se mudar todo um modelo caduco de segurança pública.

IMS/Uerj: Em nota, a Abrasco situou o caso Genivaldo no contexto das determinantes raciais como fator definidor de quem morre e vive. Como a interseção entre raça e saúde mental podem ser analisadas neste caso?
RPH – A necropolítica à brasileira se dirige a corpos muito bem demarcados pela racialização, sendo os negros os principais alvos alvejados, por exemplo, pelas políticas de confronto armado adotadas pela segurança pública – eis uma evidência estatística. A frase lapidar do menino Marcos Vinícius, dita à sua mãe momentos antes de morrer vítima de uma “bala perdida” na Favela da Maré, em 2018, resume bem tal necropolítica: “Mãe, eles [os policiais estaduais que o alvejaram] não viram que eu estava com uniforme da escola?”. Genivaldo poderia ter dito de modo semelhante: “Eles [os policiais rodoviários federais] não viram que eu estava com cartelas de medicamentos nos meus bolsos?”. Os policiais de fato encontraram tais cartelas em seus bolsos na revista que fizeram dele. Há um ponto cego em questão que parece obstaculizar os agentes do poder público de enxergar negros periféricos como cidadãos de direitos. 

IMS/Uerj: É possível relacionar o caso Genivaldo ao clima de ameaça de autoritarismo, violência e discurso de ódio crescentes?
RPH – Conforme a psicanalista Betty Fuks, o bolsonarismo se inspira claramente na linguagem do Terceiro Reich, que serviu de garantia para Hitler ocupar o locus do poder. Segundo tal linguagem, a dificuldade não reside propriamente na execução do ato, mas sim na eliminação dos seus rastros. No Brasil, o que se tenta é apagar os crimes como se vê, por exemplo, na subnotificação da COVID-19 contornando a política sanitária negacionista genocida, nas armas plantadas em locais de crimes como forma de acobertar execuções etc. No caso específico do Genivaldo, tudo ocorreu a céu aberto; os policiais sabiam que estavam sendo filmados, mas a certeza da impunidade não os intimidou. Pelo contrário, agiram de forma exibicionista com extrema crueldade, ao transformar a viatura policial numa câmara de gás improvisada. Diante do ocorrido, por sua vez, a Polícia Rodoviária Federal emitiu uma nota oficial afirmando que Genivaldo teria sofrido uma morte súbita no trajeto até a delegacia (semelhante ao que se disse sobre Sandro, protagonista do caso do “Ônibus 174”, morto em condições parecidas), visando a acobertar o sadismo de seus agentes com cinismo institucional. 

IMS/Uerj: O que a morte do Genivaldo de Jesus representa na história brasileira de abordagem e políticas no campo da saúde mental?
RPH – Há casos paradigmáticos que nos servem como ponto de basta a certas práticas até então toleráveis socialmente. Por exemplo, o “caso Araceli”, o assassinato cruel de uma menina por homens da elite capixaba na década de 1970, somado à tentativa mais recente de assassinato de Maria da Penha por seu cônjuge, vêm sendo tomados como paradigmáticos para se pensar políticas públicas brasileiras de combate ao feminicídio. 

O Brasil já foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em função da morte do paciente psiquiátrico cearense Damião Ximenes, em 1999, quando de sua internação numa clínica privada (Guararapes) conveniada ao SUS. Vítima de maus-tratos e tortura na referida clínica, tratou-se da primeira vez que se julgou, conforme a sentença, “a violação dos direitos de uma pessoa portadora de deficiência mental”. É justamente isso que se lê na sentença que se repete no “caso Genivaldo”.

IMS/Uerj: O que fazer a partir de agora? Que tipo de reação e resposta é possível prever no âmbito do enfrentamento e cuidado da saúde mental?
RPH – Investir maciçamente na Reforma Psiquiátrica (desinstitucionalização da loucura/drogadicção), na Luta Antimanicomial (desmanicomialização/desmedicalização) e na Reabilitação Psicossocial (reinserção social e promoção da cidadania). 


IMS/Uerj: Como essas políticas foram afetadas pelo atual governo? Podemos relacionar o estado atual dessas redes de atenção e cuidado em saúde mental com o caso específico do Genivaldo?
RPH –
O governo Bolsonaro vem tentando sucatear a rede de saúde mental, que incluía inclusive o Programa de Saúde da Família (PSF) na atenção básica. Trabalhei com matriciamento em saúde mental na atenção básica junto ao PSF, quando fui psicólogo estatutário do SUS, e já vi muito atendimento de urgência/emergência psiquiátrica ser compartilhada entre os agentes comunitários de saúde (ACS) e as forças de segurança pública (seja PMs, seja bombeiros), que possuem o monopólio estatal do uso da força.

Do que presenciei, usavam-na na justa medida com o fim de preservar o próprio paciente e o seu entorno. Se o governo federal corta o financiamento da atenção básica – numa paranoia com os médicos (muitos cubanos) do Programa Mais Médicos, por exemplo -, é evidente que, sem os ACS, a polícia tende a agir sozinha com sua brutalidade habitual em casos de urgência/emergência. Da mesma forma, se o governo federal corta os investimentos dos programas progressistas em saúde mental e passa a financiar comunidades terapêuticas religiosas como estratégia de enfrentamento à loucura/drogadicção, boa coisa isso não pode dar, dado que religião e doença mental é uma mistura explosiva. 

No caso do Genivaldo, fica difícil afirmar que teria sido diferente caso um ACS se identificasse no momento da abordagem policial e lhes solicitasse maior compreensão do estado mental do abordado. Todavia, me parece uma hipótese plausível tendo em vista os laços comunitários que os ACS costumam ter com a população adscrita, bem como sua articulação com outros setores da sociedade. 

Em tempo: o SAMU, que seria o serviço referenciado para urgência/emergência, costumava – ao menos na minha época de SUS, há uns 15 anos – ter muita resistência em atender casos de saúde mental e chamavam a polícia ou bombeiros como apoio. Os ACS, orientados pela equipe matricial de saúde mental, costumavam atuar como articuladores da atenção à crise nesses momentos. Eis a ideia de “rede” que está sendo desarticulada pelo governo bolsonarista.