Aula inaugural comemora a trajetória de Hesio Cordeiro, que passa a dar nome ao Instituto de Medicina Social da UERJ
A aula inaugural do ano letivo 2021, ocorrida na última terça (04/05), teve um duplo peso simbólico: marcar a abertura dos cursos – em modo remoto – e oficializar a nova identidade da Unidade, desde janeiro nomeada Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro (IMS/UERJ), com uma mesa redonda dedicada ao homenageado.
O evento online (disponível no canal do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – PPGSC no Youtube) contou com a participação de referências do campo da Saúde Coletiva que prestaram homenagem à figura de Hesio Cordeiro, falecido no final de 2020. Um momento importante, conforme ressaltou a professora e diretora do IMS, Claudia de Souza Lopes, para reconhecer o papel histórico, político e acadêmico do médico sanitarista, fundamental para a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) e do próprio Instituto, além de ter sido reitor da UERJ. O evento foi também oportuno, conforme salientou o vice-diretor, Rossano Cabral Lima, para que as ideias e contribuições de Hesio Cordeiro sirvam como inspiração para as novas gerações de alunos do IMS.
“Ele é um dos grandes nomes da Saúde Coletiva brasileira. Em sua trajetória profissional, atuou como médico, pesquisador, professor e gestor. Suas propostas inovadoras no campo da Saúde, na crítica ao complexo médico-industrial e na busca pela equidade e universalidade no acesso à saúde marcaram toda uma época e inspiraram gerações de profissionais da saúde. É também lembrado por seus colegas e alunos pelo seu caráter alegre e generoso”, afirmou a diretora, ressaltando que o tributo representa um reconhecimento e um desafio na preservação e ampliação do seu legado.
Na cerimônia de abertura, a presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e professora do IMS, Gulnar Azevedo, falou a respeito da influência do sanitarista na construção do direito à saúde. “Em nome da Abrasco, quero destacar a trajetória dele na Saúde Coletiva. O Hesio foi um dos fundadores do maior sistema universal público de saúde no mundo, o SUS. Com sua capacidade de elaboração, nunca abandonou a formação e o pensamento crítico e, acima de tudo, a necessidade de construir alguma coisa. E ele nos deixou esse legado. O IMS foi o lugar onde eu comecei a entender que a saúde é um bem para toda a população. O Hesio foi meu grande professor”, expressou, informando que a Abrasco instituiu em seu Congresso Nacional o “Prêmio Hesio Cordeiro”, dedicado aos melhores trabalhos.
O vice-reitor da UERJ, professor Mário Carneiro, também elogiou a história de conquistas. Para ele, trata-se de uma homenagem “muito especial”, posto que o IMS é, no fundo, “a casa do professor Hesio”. O diretor do Centro Biomédico, Jorge Carvalho, lembrou as contribuições do ex-reitor na gestão da UERJ para destacar a faceta pública de Hesio Cordeiro. “Ele participou da criação de várias instâncias institucionais, entre elas o Centro de Estudos Ambientais e Desenvolvimento Sustentável (CEADS), em Ilha Grande, com grande atuação nos estudos ecológicos e de meio ambiente, o Prociência da UERJ, elogiado em todas as instituições de ensino e pesquisa do país como uma grande iniciativa, além de um sistema de descentralização financeira, facilitando a disponibilização de recursos para unidades acadêmicas e seus departamentos”.
A mesa: trajetória, legado e memória
Herança acadêmica e institucional
O debate da mesa “Hesio Cordeiro: trajetórias” foi aberto com o depoimento pontuado por recordações acadêmicas da professora emérita da UERJ Maria Andréa Loyola. Ela lembrou o início de sua relação com Hesio, assim que ela chegou do exílio em 1975 e passou a trabalhar na PUC-SP e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), quando foi convidada a atuar no IMS para estruturar a instituição e suas atividades. “Ele era dócil, trabalhador e inteligente. Era um homem de convicções”, afirmou para ilustrar os esforços de Hesio na criação da Abrasco e também na qualificação do então IMS. “Ele sabia que uma instituição de pós-graduação precisava de mestres e doutores. Ele concluiu o mestrado sob minha orientação com o tema da indústria de medicamentos e automedicação, temas muito discutidos naquele momento no IMS”.
Outra característica destacada pela professora Maria Loyola foi a postura institucional. “Hesio Cordeiro sabia que, para criar, ampliar e consolidar instituições, era preciso ser político e fazer política, tanto no campo acadêmico quanto no partidário”, observou, falando sobre a atuação dele para mudar as regras de eleição à reitoria da UERJ, cargo que, mais à frente, viria a ocupar. “O Hesio reitor modernizou e informatizou a universidade e a expandiu para além do campus Maracanã. Criou a Faculdade de Formação de Professores de Caxias, o curso de Engenharia de Resende, o Centro de Estudos Ambientais em Ilha Grande, entre outros. Ele expandiu também de forma notável a pesquisa e a pós-graduação na universidade”, enumerou, encerrando sua fala com mais uma memória: a de quando, na presidência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), fez uma “dobradinha” com o então reitor Hesio para dar destaque à Saúde Coletiva no órgão, um desejo dele e gesto que conferiu autonomia à área.
A professora Loyola está atualmente à frente do projeto de criação do Centro de Memória do IMS/UERJ.
Política, gestão e militância
O sanitarista e ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão abordou sua trajetória ao lado de Hesio Cordeiro, dividindo-a em seis momentos de convívio direto nos campos da academia, da gestão pública e da atenção à saúde. O primeiro, vivido quando ainda aluno na segunda metade dos anos 1970 e dedicado ao estudo de medicina e à militância sanitária. Hesio foi tanto seu professor, na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), quanto parceiro na luta política.
“O que se destacava nele era uma simpatia, articulação e inteligência enormes. Ele fazia análises que iam além da mera retórica militante, muito comum na época. Eram intervenções argutas, que vislumbravam o futuro, apontavam um caminho para a frente. Era um médico, com excelente formação clínica, falando muito bem de Saúde Coletiva. Isso, para mim, fazia toda a diferença”, disse.
Nesse momento de militância, Temporão recordou do documento sobre democracia e saúde do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), co-assinado por Hesio Cordeiro e que serviu de marco para orientar a estratégia do movimento da reforma sanitária até a Constituinte. “O período de militância pré-SUS, de construção das ideias e estratégias da reforma sanitária e do SUS, foi muito precioso na minha convivência com ele”.
O Hesio Cordeiro pensador, pesquisador e acadêmico foi outro momento importante na relação entre os dois. José Gomes Temporão ressaltou o papel das reflexões do ex-reitor da UERJ, que foi seu orientador no mestrado, na compreensão da dinâmica capitalista no campo da saúde. O período no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), presidido por Hesio Cordeiro entre 1985 e 1988, foi destacado também como um momento seminal e desafiador: “assumir a instituição mais importante da saúde brasileira e prepará-la para o que viria a ser o SUS poucos anos depois. […] O escopo do Inamps ampliou-se enormemente, passando de 112 municípios envolvidos para 2.800. Financiar a integração da rede de saúde no território nacional, com recursos da Previdência Social, soava como uma heresia. Estabelecemos um modelo de governança. Ele foi fundamental para aumentar o volume de recursos para a saúde”, observou Temporão.
A passagem de Hesio pela Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro, durante o governo Garotinho, foi outro momento pessoal e profissional vivido juntos. “Ele me chamou para compor a equipe como assessor de planejamento. A ideia era, entre outras coisas, introduzir a mesma racionalidade das ações integradas no campo da educação. Confesso que foi sem sucesso, período muito confuso, disputas políticas, dificuldades operacionais. Durou 10 meses”, contou.
Em 2007, foi a vez do ministro Temporão convidar Hesio. O cargo era na Agência Nacional de Saúde Suplementar, para assumir a diretoria responsável pela qualidade do cuidado e das práticas de saúde que as operadoras devem oferecer aos usuários. “Ele tinha uma grande preocupação de contribuir para que as relações entre saúde suplementar e SUS atingissem um outro patamar, mais estruturado e orgânico”, expressou, encerrando com um apanhado de qualidades de Hesio: “Era a pessoa que te escuta, que está permanentemente disposta a compartilhar conhecimento, sempre buscando dar um sentido a políticas e a experimentos institucionais, que mudam a realidade, educam, mobilizam e dão um norte coletivo”.
O negociador do SUS
O professor do IMS Eduardo Levcovitz também nutriu uma relação de décadas com Hesio Cordeiro. O primeiro encontro foi decisivo e transformador em sua vida quando, ainda estudante de Medicina e frustrado com o conteúdo que predominava na formação, queria mudar de área para uma compreensão melhor e diferente do Brasil e do mundo. Assistiu a uma palestra de Hesio e se identificou com as reflexões. “Ele tinha uma enorme capacidade de escutar, de escutar guris, e de transmitir ideias de maneira delicada e não impositiva. Ele sempre pensava em como as reflexões podiam levar a uma intervenção sobre a realidade, que era essencialmente o que me angustiava. […] Fui ao IMS a convite dele e, a partir dali, a parceria e o convívio se intensificaram, num espírito solidário de produção de conhecimento e de intercâmbio permanente não excludente”.
Eduardo Levcovitz também integrou a equipe do Inamps presidido por Hesio e recordou o período de discussões intensas no marco do processo de redemocratização, entre as quais estava o projeto do SUS: “Uma discussão genialmente construída por Hesio e enfrentando oposições e resistências que não foram pequenas. A verdadeira construção de uma estratégia de ponte para o SUS através do fortalecimento de secretarias municipais e estaduais de saúde foi obra dele. Lembro como se fosse hoje, nós, no pequeno apartamento do Hesio, debatendo como ia ser discutido, com os ministros e com o presidente Sarney, a descentralização dos poderes da maior instituição de assistência médica, cobiçadíssima no meio político”, comentou Levcovitz, enfatizando a paciência e a habilidade política de Hesio Cordeiro para lidar com um esforço desse tamanho, em meio a diferenças políticas e ideológicas consideráveis.
Hesio Cordeiro: a atualidade do seu legado
A mesa redonda foi assistida por cerca de 130 pessoas e foi concluída com uma troca de ideias e lembranças com a plateia. As intervenções de docentes, estudantes e colegas presentes destacaram a importância, atualidade e potência da obra de Hesio Cordeiro face à profunda crise sanitária por que passa o Brasil. A figura do ex-reitor da UERJ e um dos idealizadores do SUS nunca foi tão necessária como referência intelectual e política em meio às investidas de forças políticas que atuam na contramão de conceitos e princípios pelos quais ele sempre advogou: Democracia, Justiça Social e Direito à Saúde.