quarta-feira, abril 24, 2024
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Mortalidade nas prisões do Rio de Janeiro: Covid-19 e a política do definhamento, por Fabio Mallart – novo artigo da Página Grená

Fábio Mallart
Mestre em Antropologia e Doutor em Sociologia pela USP. Pesquisador de pós-doutorado no Instituto de Medicina Social Hesio Cordeiro (IMS/UERJ)

09 de junho de 2015, Presídio Ary Franco, Água Santa (RJ). A área destinada à custódia dos presos é bastante claustrofóbica em razão da inclinação do relevo e da falta de planejamento, o que dá a sensação de localizar-se no subterrâneo. A direção da unidade prisional informou que a capacidade total do estabelecimento é de 968 presos, no entanto, havia 2.063 internos na unidade na data da vistoria. As paredes, o teto e o chão, na medida em que se caminha em direção às celas, vão ganhando um aspecto cada vez mais imundo com infiltrações, vazamentos, insetos, sujeira e teias de aranha. O acúmulo de lixo e as infiltrações tornam o ambiente além de sujo, muito úmido, o que é agravado pela superlotação. A iluminação comumente se dá através de “gambiarras” improvisadas pelos próprios internos, situação que oferece riscos tanto de choque elétrico quanto de incêndio pela fiação exposta. Dentro das celas observam-se canos quebrados, “bois” [banheiros] entupidos e água inundando parte das celas. A maioria dos detentos afirmaram nunca ter saído da cela para o banho de sol, alguns já ali há 2 (dois) ou 3 (três) meses. Os internos reclamaram muito da alimentação fornecida na unidade. Tanto no que diz respeito a qualidade, a quantidade e aos constantes atrasos no horário em que esta é servida. Uma reclamação comum nas unidades visitadas pelo Monitoramento Carcerário da Defensoria Pública é o rigoroso racionamento de água feito nas unidades. Entretanto, no Presídio Ary Franco, a distribuição da água parece não ser o problema, mas sim a qualidade desta. Muitos reclamam do gosto de ferrugem e por vezes do odor; alguns relataram que em determinados períodos a água traz muitas partículas não identificadas e que por isso improvisam uma espécie de filtro com garrafas plásticas e tecido. Os relatos indicam grande dificuldade ao acesso da assistência médica, segundo os presos, é preciso estar beirando a morte pra conseguir ir à enfermaria. O ambiente sujo e úmido das celas colabora para a proliferação de doenças, especialmente respiratórias como a tuberculose.

Pinçado de um relatório de inspeção elaborado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro (DPERJ), no âmbito do programa de monitoramento do sistema prisional, o trecho acima transcrito, longe de configurar uma mera exceção, ilumina a realidade do sistema carcerário brasileiro. Se, de uma perspectiva sincrônica, o fragmento rebate nos outros estados da Federação, ao posicioná-lo na linha do tempo nota-se que antes e depois de 2015 os traços que o constituem são constantes – inseparáveis da própria existência de tal prisão.

Em 2011, o Subcomitê de Prevenção da Tortura das Nações Unidas, ao adentrar nas dependências desse presídio, já anotara que as celas eram escuras, sujas e infestadas de baratas e outros insetos. À época, o sistema de esgoto dos pisos superiores vazava pelo teto e pelas paredes, afetando as celas inferiores. Se, em 2015, a Defensoria afirmou que a superlotação e a umidade fomentavam a proliferação de doenças como a tuberculose, em 2011, tal como apurado pelo Subcomitê, e descrito no relatório da defensoria, os detentos sofriam com as doenças de pele e do estômago. Em março de 2020, em pleno contexto pandêmico, a prisão possuía 17 casos suspeitos de sarampo, doença com alto potencial de transmissão, ainda mais em espaços superlotados e mal ventilados como as prisões[1].

Nesse cenário, as mortes por doenças apontam para a existência de um massacre: lento e silencioso. O que se passa no Rio de Janeiro, cuja taxa de mortalidade nas prisões é uma das mais elevadas do país (cinco vezes a média nacional)[2], é emblemático. Entre janeiro de 2015 e agosto de 2017, 517 presos e presas faleceram em virtude de várias enfermidades[3]. Segundo dados da Defensoria Pública do Estado, elaborados a partir da análise dos laudos cadavéricos de 83 presos que morreram entre 2014 e 2015, 30 apresentavam caquexia (grau extremo de emagrecimento) e/ou desnutrição. Além disso, 53 internos faleceram de tuberculose, pneumonias ou complicações decorrentes de infecções pulmonares.

Vale notar que esses números ressoam em todos os estados do país. Entre 2014 e 2017, 6.368 presos e presas morreram nos cárceres brasileiros, sendo que 3.670 casos (57,6%), foram classificados como “mortes naturais”. Desses óbitos, 472 sequer foram esclarecidos, sendo categorizados pelos distintos estados como “causa indeterminada”[4].

Superlotação em locais sem ventilação, úmidos e com pouca luminosidade, mofo, vazamento de esgoto e infiltrações, racionamento de água potável ou abastecimento de água imprópria para o consumo, falta de produtos de higiene e limpeza, fornecimento de comida deteriorada ou privação alimentar, ausência de medicamentos e de profissionais de saúde, infestação de insetos e roedores. Como discutido em outros trabalhos, trata-se de uma racionalidade governamental que opera a partir de uma política do definhamento, cuja resultante é a produção de um estado progressivo de decomposição, em que presos e presas são mortos lentamente, em função das próprias condições de funcionamento das prisões[5].

Da sarna à tuberculose, passando pelos surtos de sarampo, beribéri e meningite meningocócica, sem contar as doenças do aparelho digestivo e as doenças respiratórias, estas últimas intimamente ligadas à superlotação e à ausência de iluminação e ventilação adequadas, o fato é que os cárceres operam como espaços de produção e disseminação de distintas enfermidades.

Diante dessas condições, não é de espantar que o coronavírus tenha figurado como mais um fator na composição do massacre. Apesar de todos os esforços de ocultação, o crescimento dos óbitos é evidente. No Rio de Janeiro, entre 11 de março, data do primeiro decreto de isolamento social, e 15 de maio de 2020, 48 presos faleceram, aumento de 33% em relação ao mesmo período de 2019[6]. Todavia, e esse é o ponto que importa sublinhar, não foram só as complicações causadas pela Covid-19 que desencadearam o aumento do número de óbitos, mas, sobretudo, algumas medidas adotadas pelos órgãos penitenciários, como bem observaram os integrantes do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT/RJ), em uma série de relatórios referentes ao ano de 2020[7]. Dentre tais medidas, destaca-se a interrupção dos tratamentos médicos e da distribuição de medicamentos para doenças como tuberculose e HIV/Aids, além da suspensão de visitas familiares, decisão que teve como consequência a restrição da entrada de alimentos que amenizam a pouca quantidade e a péssima qualidade da alimentação fornecida pela administração prisional – daí a hipótese dos membros do MEPCT/RJ de que o número elevado de pessoas desnutridas quando de suas visitas, entre outros fatores, esteja ligado a tal interrupção.

Se nos primeiros meses de pandemia, em virtude da precariedade que caracteriza o sistema prisional, já se entrevia que o coronavírus tendia a acelerar a produção da morte, o que não se imaginava é que a maneira como a crise sanitária foi conduzida pelos órgãos penitenciários pode ter sido mais letal do que o próprio vírus.

Essas questões, aqui apenas esboçadas, vêm sendo buriladas no âmbito do projeto de pós-doutorado intitulado Corpos matáveis: a prisão e suas diferentes tecnologias de produção da morte, desenvolvido junto ao Instituto de Medicina Social, sob a supervisão de Sérgio Carrara. No horizonte dessas reflexões, que seguem em curso, encontram-se questões relacionadas à categorização das mortes, ao processamento dos óbitos pelo sistema de justiça e aos casos de morte por caquexia (grau extremo de emagrecimento) e/ou desnutrição. Todas – e cada uma dessas inquietações – apontam para as relações de continuidade entre pena de prisão e morte[8].


[1] https://extra.globo.com/noticias/rio/especialista-alerta-para-disseminacao-de-sarampo-no-presidio-ary-franco-24306591.html.

[2] http://informe.ensp.fiocruz.br/noticias/45983.

[3] https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/14/massacre-silencioso-mortes-por-doencas-trataveis-superam-mortes-violentas-nas-prisoes-brasileiras.htm.

[4] https://oglobo.globo.com/politica/cadeia-de-omissoes-22813630.

[5] Mallart, Fábio. Findas linhas: circulações e confinamentos pelos subterrâneos de São Paulo. Lisboa: Etnográfica Press, 2021.

[6]https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/05/20/rj-tem-48-mortes-em-presidios-durante-quarentena-da-covid-19-o-maior-numero-em-6-anos.ghtml.

[7] http://mecanismorj.com.br/wp-content/uploads/Relat%C3%B3rio-Tem%C3%A1tico-2020-Aglomera%C3%A7%C3%A3o-Legal-Morte-Indeterminada-pandemia-de-COVID-19-e-a-necropol%C3%ADtica-prisional-no-estado-do-Rio-de-Janeiro.pdf.

[8] Os argumentos aqui esboçados encontram-se desenvolvidos mais detalhadamente em: Mallart, Fábio; Araújo, Fábio. Uma rua na favela e uma janela na cela: precariedades, doenças e mortes dentro e fora dos muros. Revista Sociedade e Estado, 36(1): 61-81, 2021.