sexta-feira, abril 26, 2024
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Gênero e saúde: uma articulação inadiável

O IMS Comunica entrevistou Elaine Reis Brandão e Fernanda de Carvalho Vecchi Alzuguir, professoras do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC/UFRJ) que lançam, nesta terça-feira (30/08), no Festival do Conhecimento da UFRJ, o livro “Gênero e saúde: uma articulação necessária”. Publicada pela Coleção Temas em Saúde da Editora Fiocruz, a obra – disponível para compra na Livraria virtual da Editora – aprofunda o debate sobre saúde e suas dimensões sociais e sistematiza um amplo arco de reflexões sobre os processos de adoecimento e cuidado atrelados às relações desiguais entre homens e mulheres.

Nesta conversa, as autoras – ambas egressas do IMS – explicam a importância de a análise no campo da saúde ser multifacetada e incorporar saberes que contornem a rigidez analítica dos saberes biomédicos. A necessidade de uma análise mais plural ficou ainda mais evidente com a eclosão da pandemia de Covid-19, que precisa ser compreendida como mais do que um evento sanitário. A brutal crise social e econômica decorrente, cuja gravidade está diretamente relacionada às disparidades diversas da vida social, penalizou de modo mais acentuado as mulheres. Em outras palavras, gênero e saúde tornaram-se uma articulação necessária e também urgente.

IMS – Como surgiu a ideia do livro?

Elaine Reis Brandão e Fernanda Vecchi Alzuguir – A ideia do livro surgiu a partir de nossa prática docente na disciplina optativa sobre a temática para a graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro. A experiência ficou registrada em artigo, que integrou um dossiê sobre a participação das Ciências Sociais na primeira década desta graduação no Brasil. Também havíamos ofertado, em 2015, 2017 e 2019, três edições do curso de extensão “Medicalização do corpo: contribuições da problemática de gênero para os processos de saúde e doença”, com ampla participação de estudantes e profissionais de saúde. Assim que vimos a chamada pública da Editora Fiocruz para a seleção de obras para a Coleção Temas em Saúde, encontramos um caminho para sistematizar nossas reflexões e compartilhar esse debate com um público maior.

IMS – O próprio título da obra enfatiza a relevância de saúde e gênero estarem articulados. Qual o papel do marcador social do gênero na construção de saberes e na formulação de políticas no campo da saúde?

ERB e FVA – A construção de saberes e de práticas de atenção e cuidado em saúde, bem como a formulação de políticas públicas, não se fazem sem os marcadores sociais da diferença, a exemplo do gênero, da classe social, da raça/etnia, da geração, entre outros. Se queremos enfrentar as desigualdades sociais, raciais e de gênero, tais constructos se tornam ferramentas teóricas importantes para a compreensão destas desigualdades e para a formulação de instrumentos que atenuem tais disparidades sociais. Em geral, os saberes e as práticas em saúde têm o corpo como objeto privilegiado de intervenção, mas esse corpo tem uma história, está arraigado em dado contexto sociocultural, marcado pelo gênero, pela raça, com inscrição no território. Daí a importância de vislumbrarmos os processos de saúde e doença pelo prisma dos sujeitos, homens e mulheres cis ou transgêneros, sem reificar tal binarismo ou a heteronormatividade.

IMS – Vocês trabalham a partir de uma perspectiva interdisciplinar, que envolve a História, Sociologia e Antropologia. Como mobilizar esse conjunto de saberes no esforço de informar, esclarecer e educar os leitores interessados na discussão sobre saúde e gênero?

ERB e FVA – Somos docentes da área temática de Ciências Sociais e Humanas do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ, o que por si só já circunscreve nosso olhar e modo de compreensão dos fenômenos relativos à saúde. Estes são engendrados em contextos sociais específicos, permeados por marcadores como gênero, classe, raça, etnia, geração. Tradicionalmente, o campo da saúde tem sido bastante marcado pelos saberes biomédicos, que disputam a legitimidade conferida aos discursos científicos. O campo da Saúde Coletiva, por ser interdisciplinar, já nos confere certa desestabilização desses regimes de verdade, reforçado por nossa posição como cientistas sociais. Foram estas as disciplinas que desenvolveram uma perspectiva científica sobre como o gênero organiza a vida social, atribuindo posições distintas ao que se considera como masculino ou feminino. Tal perspectiva precisa tornar nossas ações em saúde implicadas e engajadas, do ponto de vista da interseccionalidade, quer dizer, de olhar para como os diferentes marcadores sociais de diferença se articulam na produção de desigualdades. Somos gratas à pós-graduação do Instituto de Medicina Social da UERJ que nos formou nessa perspectiva e  pelo qual temos especial carinho.

IMS – A pandemia de Covid-19 colocou o campo da saúde no centro dos debates sobre o destino da sociedade. Quais as lições e legados desta crise sanitária – que é também social e econômica – e seus efeitos nas relações de gênero, passados mais de 2 anos do aparecimento da doença?

ERB e FVA – A pandemia de covid-19 chegou em um momento particularmente delicado no país, marcado pelo negacionismo científico, pela incitação dos discursos de ódio, resultando no acirramento da violência sexual, feminicídios, misoginia, racismo, transfobia, homofobia e por diversas violações dos direitos humanos em direção a grupos vulnerabilizados. Neste contexto, a crise sanitária devido à pandemia agravou e também escancarou os efeitos das desigualdades sociais de classe, étnico-raciais, de gênero, já existentes no Brasil, e seu impacto direto sobre a saúde da população.

Entre as múltiplas implicações do gênero na saúde, agravadas pela pandemia, podemos citar, entre diversos outros exemplos que abordamos no livro, a intensificação da sobrecarga feminina em relação ao cuidado – de crianças, idosos, enfermos, do ambiente doméstico – gerando esgotamento físico e emocional, adoecimento, abandono de postos de trabalho e desemprego, diante da impossibilidade de dar conta de tarefas do mundo privado (familiar) e público (trabalho).

Essa sobrecarga recai sobretudo nas mulheres pobres que não podem contratar a mão de obra de outras mulheres para auxiliar no trabalho doméstico. Questões como essa deram maior visibilidade à importância do cuidado doméstico para a manutenção da economia e de necessidades fundamentais à existência humana, chamando a atenção à dimensão pública, relacional e coletiva do cuidado. Nos fez questionar sua naturalização como atributo feminino, debate que merece ser cada vez mais fomentado.

Em suma, a catástrofe sanitária devido à pandemia de covid-19 nos ensina que a tarefa de levar a sério o debate público sobre as implicações do gênero na saúde se tornou não só necessária como inadiável. Neste sentido, o desenho de políticas públicas não pode se sustentar mais sem a incorporação da dimensão de gênero associada a outros marcadores sociais como raça, classe e geração.

Confira abaixo o vídeo de apresentação do livro.