sábado, abril 20, 2024
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Luta Antimanicomial em 2023: caminhos e limites

Professor Rossano Cabral

O 18 de maio, Dia da Luta Antimanicomial deste ano guarda algumas particularidades e convoca a enxergar os diversos desafios que esse movimento acumula. Quatro anos após um governo que caminhou na direção contrária à ética e aos princípios da reforma psiquiátrica, a nova administração federal está diante de uma trabalhosa tarefa de reconstrução. O professor, psiquiatra e vice-diretor do IMS, Rossano Cabral, enumera os desafios e destaca que, para além da retomada de políticas e ações em saúde mental, a própria ideia de manicomialização, normalizada por parte da sociedade, ainda constitui um elemento a ser debatido e enfrentado. 

Nesta entrevista, Rossano aborda, entre outros temas, o antagonismo entre as forças políticas que compõem a coalizão governamental, que têm gerado respostas igualmente antagônicas em matéria de saúde mental. A inserção do tema das crianças e da adolescência na pauta do movimento e o papel do IMS na luta antimanicomial são também assuntos analisados na conversa. 

Instituto de Medicina Social – Por que a manicomialização é um problema?
Rossano Cabral –
A manicomialização é um problema pelo menos em dois níveis. O primeiro diz respeito à presença do hospício/hospital psiquiátrico no centro do sistema de saúde mental, como acontecia há algumas décadas não só no Brasil como em boa parte do mundo. O hospital psiquiátrico acaba por inibir a expansão de políticas comunitárias, territoriais e ampliadas de saúde mental. É uma instituição que tende a consumir a maior parte dos recursos, trata-se de um equipamento caro, que concentra o poder na mão de uma categoria –  os médicos psiquiatras – e limita bastante o potencial terapêutico. Poucas coisas realizadas no hospital não podem ser feitas em equipamentos comunitários. De fato, há algumas situações em que o paciente está em risco ou coloca outras pessoas em risco e, portanto, precisa ir para outro lugar, mas isso não significa que tal lugar precise ser um manicômio.

A manicomialização não se limita a esse aspecto físico. Um aspecto muito estudado no campo da saúde mental é a ideia de o manicômio estar dentro da gente. O professor Paulo Amarante, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP/Fiocruz), fala dos manicômios mentais. Mesmo com a política de desospitalização e redução radical dos leitos psiquiátricos, que o Brasil vinha implementando há cerca de duas décadas, observamos que a ideia “lugar de doido é no hospício” e que a carga de estigma e preconceito envolvida nessa representação ainda são muito fortes na sociedade. Ou seja, ainda existe demanda de manicomialização, vinda de diferentes lugares: a partir da segregação, da hipermedicalização, da família, da escola, da comunidade. 

Portanto, a luta contra a manicomialização não se limita à redução e extinção do hospital psiquiátrico. É um trabalho permanente, de mudança de mentalidade. Houve importantes mudanças dos anos 1970 para cá, mas ainda existe um empuxo muito forte em direção a uma espécie de normalização que tem relação com essa dimensão da manicomialização. A demanda pelo manicômio ainda existe, não se pode ignorar.

IMS – Qual a relevância do 18 de Maio no contexto brasileiro atual?
RC –
Talvez seja o 18 de maio mais importante da última década. É importante ressaltar que parte do campo da reforma psiquiátrica (intelectuais e militantes), a partir do momento em que ela tornou-se política de Estado, passou a participar da administração, tornando-se gestores de saúde mental nos três níveis de governo. Contudo, isso não retirou a autonomia nem a força vital do movimento social que promove as comemorações. Mesmo com os retrocessos políticos desses últimos seis anos, no contexto de um governo cujas políticas foram na direção contrária à ética e aos princípios que sustentam a reforma psiquiátrica, o 18 de maio não deixou de ser celebrado. Evidentemente, com muita limitação nos anos da pandemia. Neste ano, há uma simbologia mais forte porque o contexto mudou, estamos num processo de retomada de democracia plena, de participação social e de redução de desigualdade.

IMS – Como o cenário da desigualdade incide no panorama e nas lutas antimanicomiais?
RC –
As políticas antimanicomiais se incluem dentro das políticas de redução de desigualdade. Não é à toa que a prioridade são aqueles mais necessitados, seja do ponto de vista da precariedade social, seja do ponto de vista da vulnerabilidade psíquica. Então, acho que a retomada da Coordenação de Saúde Mental, agora convertida em Departamento de Saúde Mental – que significa um aumento de status intraministerial – nos fortalece para um 18 de Maio não apenas de resistência, que foi a tônica dos últimos anos, mas de aposta na ampliação dos investimentos e políticas da reforma psiquiátrica.

IMS – Quais os principais desafios e limites para o recém-criado Departamento de Saúde Mental?
RC –
Os desafios e limites já estão sendo colocados. Eu faço parte de um grupo chamado Rede Nacional de Pesquisas em Saúde Mental de Crianças e Adolescentes. Solicitamos e tivemos uma reunião com a Sônia Barros, atual diretora do Departamento de Saúde Mental. Ela ressaltou que foram anos de imensa desconstrução e negligência. Não houve incentivo na ampliação da rede de atenção psicossocial. Pelo contrário, os temas privilegiados nas últimas duas gestões (Michel Temer e Jair Bolsonaro) foram aumento das diárias de hospitais psiquiátricos, presença de aparelho de eletroconvulsoterapia entre outras ações problemáticas. As prioridades dos últimos anos foram danosas. Por isso, o lema do governo é “Brasil União e Reconstrução”. 

Tivemos, por exemplo, um apagão de informação. O Ministério da Saúde tinha uma publicação chamada “Saúde Mental em Dados”, atualizada anualmente. A última versão, contudo, é de 2015, quando a crise política se agravou. Desde então não se produziu nada. Esse tipo de informação era uma espécie de farol para a gestão que vinha em seguida. Perdemos isso. Retomar essas informações é um dos desafios, tendo em vista a negligência do Ministério da Saúde dos dois governos anteriores em produzir dados – que foi também uma tônica muito forte na pandemia. 

Um outro desafio é retomar o lugar de referência que o Brasil vinha tendo em matéria de reformas psiquiátricas no mundo todo, em especial na América Latina. Outros desafios são retomar a expansão da rede de CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) no país e avançar na presença das ações de cuidado em Saúde Mental na atenção básica/primária. Já temos iniciativas desse tipo através dos chamados NASF (Núcleo de Atenção à Saúde da Família), que fazem o que chamamos de “matriciamento”, isto é, profissionais de saúde mental (psicólogos e psiquiatras) assessorando ou mesmo atuando em atendimento junto com as equipes de saúde da família. 

Durante o último governo, houve uma desvalorização enorme dos NASF, que deixaram de ser considerados elemento obrigatório para as redes de atenção à saúde. Precisamos retomá-los, porque eles são estratégicos para desatar um dos nós da reforma psiquiátrica. Avançamos bastante nas políticas destinadas às pessoas com quadros mais graves, mas as pessoas com problemas considerados de baixa e média gravidade e complexidade ainda não são tão bem contempladas nos nossos serviços e redes de saúde. A atenção primária é fundamental para dar conta, ao menos em parte, desse tipo de demanda, que não é, em geral, uma demanda que necessita de frequência rotineira nos CAPS.

IMS – Você mencionou a retomada do prestígio da atenção em saúde mental no Ministério da Saúde, agora reunida em um Departamento próprio. Por outro lado, foi criado o Departamento de Apoio a Comunidades Terapêuticas, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Qual sua avaliação sobre esse Departamento e da existência, dentro de um mesmo governo, de abordagens tão conflitantes para o cuidado em saúde mental?
RC –
Avalio negativamente, mas consigo entender – embora não justificar. Do ponto de vista macropolítico, está claro que o governo Lula-Alckmin é um governo de coalizão que precisa dar conta de interesses contraditórios. O grupo político das comunidades terapêuticas sempre teve mais afinidade com o governo Bolsonaro. Com a gestão Lula, o lobby deles continuou forte. O atual governo vai conviver com a tentativa de conciliar coisas de difícil conciliação. É e vai ser um governo de disputa. Muita coisa só vai avançar através de pressão da nossa parte.

A questão das comunidades terapêuticas reforça a persistência de uma cultura manicomial na sociedade. Há um traço importante nessas comunidades: elas não são tão medicalizadas quanto os hospitais psiquiátricos. Muitas vezes há pouca ou quase nenhuma medicalização. São basicamente geridas por associações religiosas, por pessoas com histórico de uso problemático de substâncias psicoativas. Claro que há um apoio tácito da Psiquiatria mais conservadora, mas isso mostra o quanto, mesmo à margem do sistema formal da Psiquiatria, essas instituições vão se criando num contexto em que parte da sociedade demanda esse tipo de resposta.

É importante ressaltar que o campo da reforma psiquiátrica, do qual eu mesmo faço parte, precisa fazer um “mea culpa”. Esse cenário foi crescendo no decorrer dos anos, desde antes do governo Bolsonaro, e tem relação com a insuficiência das ações do campo da reforma psiquiátrica dentro do tema AD (álcool e drogas). Um dos desafios é fomentar políticas efetivas de saúde mental no campo AD, no Ministério da Saúde – tendo como norte as ações de “redução de danos” -, para fazer um contraponto à iniciativa do Ministério do Desenvolvimento Social e abrir espaço para que o tema AD retorne ao Ministério da Saúde. 

No governo Bolsonaro, de forma explícita e deliberada, o campo AD foi retirado do Ministério da Saúde (MS) e transportado para o Ministério do Desenvolvimento Social (na época, Ministério da Cidadania). Até o momento, o governo Lula não teve força política para devolver ao MS a gestão das respostas AD. Então, estamos nessa situação de ambivalência. O MS precisa retomar as rédeas da política AD. 

IMS – Que outros temas e discussões têm sido mobilizados pelo movimento antimanicomial na conjuntura atual? 
RC –
A questão das comunidades terapêuticas é a mais quente. O movimento manicomial não engole, com razão. Nós desconstruímos o hospital psiquiátrico tradicional pela porta e ele volta pela janela. No caso da comunidade terapêutica, não basta o discurso mais radicalmente contra a Psiquiatria tradicional, conservadora e manicomial, porque ela não está tão envolvida nesse tipo de iniciativa. A religião tem um peso muito maior. Eu fico com a sensação de que não demos tanta importância a esse fenômeno porque ele foi crescendo à margem. Agora que ganhou essa dimensão, estamos um pouco tontos com o que fazer porque o discurso antimanicomial de antes não se encaixa exatamente nessa questão. Esse é o principal desafio para a compreensão do problema.

Outra questão que apareceu mais recentemente tem a ver com os os hospitais de custódia, para onde vão as pessoas consideradas inimputáveis que cometem infração. Houve uma resolução recente do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinando o fim dessas instituições. Mas isso está gerando uma reação dos setores manicomiais da Psiquiatria e da sociedade. Já houve um manifesto do Conselho Federal de Medicina (CFM) e da Associação Brasileira de Psiquiatria contra a resolução do CNJ. Há mais um embate em curso, não será simples concretizar a determinação do CNJ.

Um terceiro tema diz respeito às pautas da infância e adolescência, que nunca foram as pautas mais privilegiadas, mesmo dentro do universo da reforma psiquiátrica. Contudo, nos últimos anos, elas vêm ganhando mais relevância. Isso se deve a dois aspectos: o primeiro foi a pandemia e o debate gerado sobre o impacto emocional e psicossocial do confinamento e da interrupção das aulas presenciais nas crianças – ressaltando que as medidas de isolamento foram necessárias. E, agora, com os episódios de violência na escola e contra a escola, a questão da relação Saúde Mental, infância e adolescência e ambiente escolar ganha destaque social. Esse é um debate importante e urgente, até porque muitas vezes as respostas são reducionistas, na linha do “vamos encher as escolas de psicólogos”, ou “vamos dar remédio” ou ainda “vamos treinar todo mundo em segurança e autodefesa”. Então, acho que o campo da Saúde Mental tem uma responsabilidade importante em relação a essa pauta daqui para a frente.

IMS – Gostaria que falasse um pouco sobre o papel do IMS no contexto da luta antimanicomial, já que a instituição possui história de protagonismo no campo da Saúde Coletiva e, especialmente, nos debates intelectuais, políticos e administrativos da Saúde Mental. 
RC –
O IMS começou a ganhar destaque já no início do movimento da reforma psiquiátrica, com a mobilização dos trabalhadores de Saúde Mental, que avançou para a luta antimanicomial ao incorporar usuários e familiares. Temos algumas figuras de proa: os professores Jurandir Freire, Joel Birman e Benilton Bezerra foram as três figuras mais importantes no período que vai do final dos anos 1970 até meados da década de 1990. O IMS teve duas contribuições centrais: foi um dos responsáveis pela mescla – que em outros países não foi possível – entre o ideário de reforma, que vem principalmente da Psiquiatria democrática italiana, com a Psicanálise. Mesmo na Itália, esses dois campos não se misturaram tanto. Aqui no Brasil houve a possibilidade de uma certa integração na origem da Reforma Psiquiátrica. Acho importante ressaltar que não é uma obra apenas do IMS. Teve um grupo de psicanalistas argentinos exilados da ditadura que contribuiu de maneira expressiva. O IMS e os professores que citei foram pontos fundamentais na articulação de uma discussão rica para a inserção da Psicanálise no campo da Saúde Coletiva e nos debates da reforma.

Tempos depois, numa questão que o IMS percebeu muito sabiamente e foi vanguarda, ganhou corpo o debate sobre o papel dos diagnósticos psiquiátricos na constituição de identidades pessoais e sociais contemporâneas. Esse é um fenômeno relativamente novo, dos anos 1990 para cá. Os diagnósticos começam a se disseminar e a fazer parte da identidade das pessoas, mas não mais como estigma e, sim, como uma identidade almejada e desejada. Como se o diagnóstico habilitasse a pessoa a fazer parte de uma rede de identidade – o que foi chamado, por nós, de bioidentidade. Vimos, por exemplo, pessoas que se socializam em torno do diagnóstico de transtorno bipolar do humor ou famílias que se socializam porque são pais de crianças com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) ou com Transtorno do Espectro do Autismo. Conseguimos, nessa discussão sobre o papel dos diagnósticos na construção das identidades sociais, uma contribuição importante para um debate que não estava inicialmente na pauta da reforma psiquiátrica, nos anos 1970 e 1980. O IMS alertou o campo nesse aspecto, desempenhando um papel de vanguarda.

Há, certamente, outros professores também importantes na casa e que tiveram ou têm estudos e pesquisas no campo da saúde mental: Carlos Plastino; Márcia Arán; Jane Russo; Martinho Silva; Rafaela Zorzanelli; Cláudia Lopes; Evandro Coutinho. Hoje o panorama mudou, mas continuamos pensando e trabalhando em temas importantes para o campo da reforma.