terça-feira, março 19, 2024
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A utilidade do teste para detecção de anticorpos do SARS-CoV-2

Análise e texto de Paulo Nadanovsky*

Há pelo menos três circunstâncias em que o teste para detecção de anticorpos de SARS-CoV-2 pode ser utilizado para ajudar a lidar com a pandemia da COVID-19. Essas três circunstâncias são as seguintes: durante o tratamento / manuseio clínico de pacientes em hospitais ou clínicas médicas; na vigilância epidemiológica para monitoramento da pandemia; para emitir certificado (ou “passaporte”) de imunidade. Discutiremos neste post a utilidade deste tipo de teste em cada uma dessas circunstâncias. O outro tipo de teste, aquele que detecta a presença do vírus, será considerado brevemente e apenas no manuseio clínico dos pacientes.

TRATAMENTO DE PACIENTES – Diagnóstico de pacientes em hospitais ou clínicas médicas para auxiliar no manuseio clínico(Não é útil)

Para ajudar no manuseio clínico de pacientes com sinais e sintomas clínicos suspeitos da COVID-19, o teste indicado é o que busca detectar a presença do vírus naquele momento específico, pois pacientes infectados devem ser isolados dos outros pacientes para evitar o contágio e ser recrutados para participar de ensaios clínicos e receber tratamentos.
Nessa situação, o teste para detecção de anticorpos não é útil, pois se o resultado neste teste for negativo pode ser que o paciente esteja infectado, mas ainda não tenha dado tempo dele produzir os anticorpos; se for positivo, pode ser que ele já tenha produzido anticorpos, mas ainda não tenha havido tempo de ter se livrado do vírus e, portanto, ainda estar contagiando.

VIGILÂNCIA EPIDEMIOLÓGICA – Monitoramento do percentual da população com anticorpos para o SARS-CoV-2, da velocidade da expansão da epidemia ao longo do tempo e do percentual de pessoas que teve infecções assintomáticas(É muito útil; imprescindível)

O objetivo do teste neste caso é o rastreamento de pessoas que já foram infectadas e produziram anticorpos contra o SARS-CoV-2. Esta vigilância epidemiológica constante é fundamental para nos ajudar a tomar decisões sobre a necessidade de aplicar medidas mais amplas e estritas de distanciamento físico, tais como fechamento de escolas e quarentena de toda a população, como também sobre as oportunidades de diminuir as medidas de distanciamento físico. Os inquéritos domiciliares sendo realizados no Brasil neste momento, utilizando este teste rápido sorológico, estão, a princípio, programados para ocorrer em quatro fases, com duas semanas de intervalo entre as fases. Dessa forma será possível estimar a velocidade do contágio do SARS-CoV-2 no país neste momento (EPICOVID19) –http://www.epidemio-ufpel.org.br/site/content/sala_imprensa/noticia_detalhe.php?noticia=3097).

Esses inquéritos serão úteis também para revelar algo muito importante, que é a quantidade de pessoas que foram infectadas, mas não perceberam, ou seja, foram assintomáticas. Além dos testes os pesquisadores entrevistarão os participantes e poderão indagar sobre sintomas recentes típicos da COVID-19. As pessoas que testarem positivo e relatarem ausência de sintomas recentes serão classificadas como casos de infecções assintomáticas. Isto é importante para investigar o papel de pessoas assintomáticas como disseminadoras desta pandemia. Esta investigação será possível, pois nas fases subsequentes à primeira fase, os pesquisadores aplicarão o teste e entrevistarão vizinhos dos participantes que foram incluídos na fase anterior.

Esses inquéritos epidemiológicos com testes rápidos sorológicos de detecção de anticorpos provavelmente serão o instrumento chave para ajudar-nos a lidar com esta pandemia, que pode durar até 2022 (e até ressurgir em 2025) (https://science.sciencemag.org/content/early/2020/04/14/science.abb5793/tab-pdf). Esses testes provavelmente atuarão como o velocímetro que indicará a velocidade do contágio, para nos ajudar a acelerar ou a pisar no freio, ao aplicarmos medidas para reduzir ou aumentar o distanciamento (confinamento) físico, tais como fechamento (ou abertura) de escolas e de comércio e confinamento (ou relaxamento) domiciliar de toda a população.
No médio/longo prazo, esses testes serão úteis para detectar quando estivermos nos aproximando do limiar de imunidade de rebanho que sinalizará o fim desta pandemia. Por exemplo, se o número básico de reprodução do SARS-CoV-2 for 3 (R0=3), quando a população atingir 67% de pessoas com anticorpos podemos presumir que a epidemia não se sustentará e logo será eliminada. 

CERTIFICADO (OU “PASSAPORTE”) DE IMUNIDADE – Identificação de pessoas na população que estão aptas a sair do confinamento domiciliar e agilizar o reinício das atividades econômicas e sociais(Utilidade depende da prevalência de imunizados na população)

Vamos imaginar três cenários para entender o efeito deste tipo de teste na prática, com o objetivo de emitir (ou obter) certificado de imunidade. O teste rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2 costuma ter alta especificidade, mas sensibilidade relativamente baixa. O teste que foi utilizado no inquérito domiciliar no Rio Grande do Sul e que está sendo utilizado nos inquéritos domiciliares em todos os estados no Brasil (com amostras de pessoas em 133 cidades sentinelas) tem especificidade de 99% (percentual de resultados negativos entre os sem anticorpos) e sensibilidade de 86% (percentual de resultados positivos entre com anticorpos).
Digamos (primeiro cenário) que em uma população de 10 mil pessoas haja, hipoteticamente, 100 (1%) com anticorpos para o SARS-CoV-2 (Figura 1). A árvore (fluxograma) demonstra claramente que neste cenário a quantidade de resultados verdadeiro-positivo (86) é menor do que a de resultados falso-positivo (99). Mesmo com uma especificidade muito boa (99%) um resultado positivo tem mais chance de ser falso do que verdadeiro. Isto significa que, para uma pessoa com um resultado positivo, a probabilidade de não ter anticorpos é maior do que a de ter anticorpos. Em posse de um “certificado de imunidade” como este, a pessoa não deve se sentir tranquilizada, pois mais provavelmente ela está suscetível do que imunizada.

Figura 1) O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2. Cenário 1: Prevalência de imunizados = 1%; Especificidade = 99%; Sensibilidade = 86%. Para cada 100 verdadeiros-positivo, há 115 falsos-positivo. Somente 46% dos positivos são verdadeiros.

Agora, em uma população com 10% ou 20% de pessoas com anticorpos (segundo e terceiro cenários), um resultado positivo neste teste demonstra grandes probabilidades da pessoa ter de fato anticorpos (Figuras 2 e 3). A quantidade de resultados verdadeiro-positivo é bem maior do que a de resultados falso-positivo; para cada 100 resultados verdadeiro-positivo há apenas 10 e 5 resultados falso-positivo, quando a prevalência é de 10% e 20%, respectivamente.

Figura 2) O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2. Cenário 2: Prevalência de imunizados = 10%; Especificidade = 99%; Sensibilidade = 86%. Para cada 100 verdadeiros-positivo, há 10 falsos-positivo. 90% dos positivos são verdadeiros.

Figura 3) O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2. Cenário 3: Prevalência de imunizados = 20%; Especificidade = 99%; Sensibilidade = 86%. Para cada 100 verdadeiros-positivo, há 5 falsos-positivo. 95% dos positivos são verdadeiros.

Prevalências de 1% ou menores são comuns neste momento na maioria das populações e de 10% ou mais, raras. Na região da Itália em que houve um grande número de mortes pela COVID-19 a prevalência de infectados não passa de 15%. A utilidade deste teste pode ser maior para subpopulações muito expostas ao vírus, tais como médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, que estejam constantemente em contato próximo com pessoas infectadas. Pode também ser útil para pessoas que são “contatos” recentes de pessoas infectadas; seria como se essas pessoas pertencessem a populações com alta prevalência de imunizados (há relatos de que entre médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e trabalhadores em hospitais de uma forma geral, a prevalência de imunizados está ao redor de 20%).

Os números nos três cenários são baseados na população agregada e ignoram a história clínica que modificaria as probabilidades pré-teste. Dentro da população geral e de populações especiais, como profissionais de saúde, existem indivíduos com e sem histórico do que soa como COVID-19, incluindo aqueles sem histórico, atípico, leve, moderado e grave. Em cada um desses históricos existe uma probabilidade pré-teste diferente (isto é, uma prevalência de imunizados diferente nas figuras), que pode variar de 2 a 80%, por exemplo.

Resumo  

O teste sorológico rápido para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2 é essencialpara o monitoramento: do percentual da população com anticorpos; da velocidade da expansão da epidemia ao longo do tempo; do percentual de pessoas que teve infecções assintomáticas. É inútil para o diagnóstico de pacientes em hospitais ou clínicas médicas com o objetivo de auxiliar no manuseio clínico. É inútil para a identificação de pessoas na população que estão aptas a sair do confinamento domiciliar e agilizar o reinício das atividades econômicas e sociais, quando a prevalência de imunizados é baixa (por volta de 1%); mas é útil quando a prevalência é mais alta, i.e., quando pelo menos 10% da população estão imunizadas. Este teste também é útil para pessoas que estão frequentemente expostas a pessoas infectadas ou que ficaram intimamente expostas a alguma pessoa infectada.

Portanto, o teste para detecção de anticorpos para o SARS-CoV-2 é:
– Imprescindível para a vigilância epidemiológica;- Inútil para manuseio clínico de pacientes;- Inútil para certificado de imunidade se prevalência de imunizados for baixa;- Útil para certificado de imunidade se prevalência de imunizados for alta (≥10%).

Aviso: Ainda não foi comprovado que os anticorpos para o SARS-CoV-2 conferem imunidade e se sim, por quanto tempo. Por isso, os valores de especificidade, sensibilidade e os cenários discutidos neste post podem não ter relevância, caso os anticorpos não confiram imunidade ou a confiram por período curto de tempo. Por enquanto, baseado em estudos com macacos e em evidência de outras viroses em humanos, presume-se que haja imunidade adquirida por pelo menos dois anos (https://science.sciencemag.org/content/early/2020/04/14/science.abb5793/tab-pdf).

  • Paulo Nadanovsky é epidemiologista da FIOCRUZ, pesquisador e professor do Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ).