sexta-feira, maio 10, 2024
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Artigo da Página Grená: O caso das fossas de Bangu, por Thais de Andrade Vidaurre Franco

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Thais de Andrade Vidaurre Franco
Enfermeira Sanitarista, Mestre e Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro na subárea de Políticas, Planejamento e Administração em Saúde.

Em minha tese de doutorado “Vozes de uma Reforma Sanitária: trabalhadores, sanitaristas e suburbanos na imprensa carioca da Primeira República”, a análise de periódicos permitiu identificar que, ao longo das primeiras décadas do século XX, trabalhadores, lideranças sindicais e moradores dos subúrbios cariocas pautaram a saúde em jornais locais e operários. Esses diferentes sujeitos e grupos populares que faziam do periodismo um meio para a ação política formularam propostas, estabeleceram conexões, adaptações e argumentos a partir de suas vivências e perspectivas políticas em diálogo com a medicina, as ciências biológicas, a higiene e o movimento pró-saneamento. Mobilizando diferentes estratégias argumentativas, aproximaram as produções do campo das ciências e das políticas de saúde de suas pautas e reivindicações. 

Em fevereiro de 1920, por exemplo, moradores de diferentes bairros do subúrbio do Rio de Janeiro – como Bangu, Marechal Hermes, Cascadura, Penha, dentre outros – empreenderam uma série de ações em crítica ao Serviço de Profilaxia Rural. Suas iniciativas se voltavam contra as notificações feitas pelos agentes de diferentes Postos de Profilaxia Rural que exigiam que os moradores daquelas localidades construíssem fossas e latrinas em um prazo de até 30 dias. Ao proprietário que não cumprisse as orientações no período determinado eram aplicadas multas.

A exigência da construção de fossas nos bairros sem coleta de esgoto tinha como objetivo central o combate à ancilostomose nos subúrbios da capital e fazia parte das ações desenvolvidas no âmbito da ampliação do combate às endemias rurais e de outras mudanças instituídas pelo então recém-criado Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP). A criação de tal departamento ocorreu no contexto da atuação do Movimento Pró-Saneamento Rural que, organizado em torno da Liga Pró-Saneamento do Brasil, defendia que as endemias rurais eram o principal problema nacional. Segundo a interpretação desse movimento reformista a alta prevalência de doenças entre os brasileiros seria causada pelo abandono dos moradores das áreas rurais pelo Estado, e a superação desse problema nacional se daria por meio da ampliação da atuação do governo federal na saúde (HOCHMAN, 1998).

Naquele contexto, os subúrbios cariocas vivenciavam intensamente as contradições do processo de formação da nação. Os bairros que margeavam as estações de trem passavam por mudanças aceleradas, com a criação de um sistema suburbano de transporte de passageiros, o barateamento progressivo dos preços das passagens, a expansão do número de fábricas e oficinas e um vertiginoso crescimento populacional. Ao mesmo tempo em que os novos meios de transporte reduziam a distância daqueles bairros com o centro da capital se intensificavam e diversificavam as formas de marginalização e exclusão urbanas. Local de moradia da crescente população de operários e trabalhadores de serviços, os subúrbios, permaneciam excluídos das melhorias empreendidas nas regiões mais ricas da cidade.

Ante a essas contradições, os moradores dos subúrbios formularam um rico campo de interpretações acerca das ações dos Serviços de Profilaxia Rural mobilizando esforços ora de resistência, ora de apoio às ações do Estado. Por um lado, defendiam a importância do saneamento da região e a existência dos postos para o atendimento à população. Por outro, argumentavam, que a responsabilização dos moradores pela construção das fossas e a cobrança de multas ampliava a carestia dos trabalhadores, afetando diretamente a subsistência das famílias. Ao não considerar as consequências que tais medidas teriam para a vida e saúde dos moradores, a crítica popular afirmava que os responsáveis pelo serviço de saneamento provavam sua ignorância sobre as condições de vida da população dos bairros distantes do centro da capital (VOZ DO POVO, 1920a). Para os moradores, caberia ao Estado a responsabilidade da realização das obras de saneamento dos bairros do subúrbio. Em defesa de sua causa, enviaram cartas com reclamações para redações de diferentes jornais da cidade do Rio de Janeiro, convocaram reuniões com políticos e sanitaristas, redigiram abaixo-assinados e cartas endereçadas às autoridades públicas. A crítica à questão das fossas compareceu até no carnaval de 1919 em uma alegoria do desfile do clube carnavalesco Fidalgos de Madureira que ironizava o fato de o governo exigir que moradores de casas humildes tivessem de construir fossas que, muitas vezes, poderiam custar mais que o próprio imóvel (O JORNAL, 1920). 

A utilização da imprensa como estratégia de crítica popular às exigências dos Postos de Profilaxia Rural não se restringiu ao envio de cartas para os grandes jornais. O jornal operário Voz do Povo se engajou ativamente na defesa dos interesses dos moradores dos bairros suburbanos e na cobertura de suas ações, em especial do bairro de Bangu, onde localizava-se a maior empresa têxtil da capital federal. Por meio desse jornal, foram convocadas reuniões sobre a questão e publicados artigos com duras críticas à ação do Serviço de Profilaxia Rural (VOZ DO POVO, 1920b). 

Ao que tudo indica, após a resistência dos moradores dos bairros suburbanos atendidos pelos Postos de Profilaxia Rural e o intenso debate público sobre a questão, as intimações do governo para a construção das fossas foram progressivamente interrompidas. Em setembro de 1920 os serviços de esgotamento sanitário da capital, antes a cargo da Inspetoria de Esgotos da Capital Federal, foram incorporados ao DNSP, que passou a ter a responsabilidade de “fornecer fossas de depuração” (BRASIL, 1920). 

A construção de um sentido público para as questões da saúde em periódicos publicados por organizações de trabalhadores ou moradores de bairros suburbanos durante a Primeira República não se restringiu ao episódio das fossas. Nas primeiras décadas do século XX,  momento em que a atuação política dos trabalhadores cariocas assumia sentidos e formatos diversos de organização, o periodismo configurava uma das suas estratégias de luta para intervir na vida política da cidade (GOMES, 2005; MACIEL, 2016). Nas páginas desses periódicos, grupos engajados em diferentes causas tematizaram questões relacionadas à infraestrutura urbana dos bairros periféricos, à educação pública, à cultura, às condições de moradia, ao acesso à alimentação e à saúde pública. Por meio de suas publicações, suburbanos formavam uma agenda pública ao denunciar o abandono das margens da capital pelo Estado. Precisamente, enriqueciam o debate público ao apontar para a relação entre o adoecimento e a desigualdade na distribuição de recursos, as péssimas condições de trabalho, as precárias condições da estrutura urbana e das moradias.

A presença do debate sobre a saúde pública em periódicos populares publicados durante a Primeira República nos permite questionar a visão, relativamente sedimentada no campo da Saúde Coletiva, de que a história da saúde pública brasileira seria uma história circunscrita às ações de elites políticas, econômicas e científicas. Diferente do apontado nos importantes trabalhos de Castro Santos (1987) e Gilberto Hochman  (1998), nossos achados permitem afirmar que o processo de politização da saúde durante a Primeira República envolveu um conjunto mais amplo e diverso de atores, incluindo indivíduos e grupos historicamente subalternizados que tinham a produção de periódicos como parte de suas estratégias de luta política. Essa condição evidencia um circuito social distinto, mais complexo, que buscava atuar ativamente na construção das políticas, instituições e serviços de saúde.

A identificação das formulações e ações populares como sendo relevantes para a trajetória das políticas de saúde pública parte da incorporação das ideias de autores como Raymond Williams, Antonio Gramsci, entre outros, para os quais a transformação dos valores públicos e da cultura política representa aspecto constitutivos do poder e, portanto, influem nos processos de mudança histórica. Por essa perspectiva, trata-se de resgatar aspectos silenciados e esquecidos que revelam esses grupos sociais como agentes ativos que teorizaram sobre sua existência e foram parte constitutiva do processo de mudança, interferindo tanto no desenho institucional das políticas de saúde, quanto nas possibilidades de sua implementação. O alcance de suas ações, é claro, tem de ser considerado à luz da distribuição desigual dos recursos de poder e possibilidades de vocalização, o que não se confunde com o entendimento de que fora das elites a história se encerra. 

Referências

VOZ DO POVO. A questão das fossas de Bangú: Alto lá, Sr. Belisario Penna! Ignorancia não; falta de dinheiro! Voz do Povo, Rio de Janeiro, p.02, 07 mar. 1920a. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/720003/per720003_1920_00030.pdf

O JORNAL. F.M. Fidalgos de Madureira: O grande préstito de hoje. O Jornal, Rio de Janeiro, 16 fev. 1920. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/110523_02/601  

VOZ DO POVO. Saúde Pública persegue os operários: uma reunião para tratar das ‘fossas’ do Bangu. Voz do Povo, Rio de Janeiro, p.2, 22 fev. 1920b. Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/720003/per720003_1920_00016.pdf 

BRASIL. Decreto n° 14.376, de 24 de setembro de 1920. Transfere para o Ministério da Justiça e Negócios Interiores os Serviços ora a cargo da Inspetoria de Esgotos da Capital Federal. . 21 set. 1920. 

CASTRO SANTOS, L. A. de. Power, Ideology, and Public Health in Brazil, 1889 – 1930. 1987. Havard University, Cambridge, Mass., 1987. 

GOMES, A. de C. A invenção do trabalhismo. [s.l.] Editora FGV, 2005. 

HOCHMAN, G. A Era do Saneamento: As Bases da Política de Saúde Pública no Brasil. 1. ed. São Paulo: Hucitec; ANPOCS, 1998. MACIEL, L. A. Imprensa, esfera pública e memória operária – Rio de Janeiro (1880-1920). Revista de História (São Paulo), n. 175, p. 415–448, dez. 2016.